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Final inusitado de 'After Life' traz o melhor de Ricky Gervais

Última cena parece propor que, apesar do caos da nossa existência, devemos investir em momentos de felicidade

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After Life

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Ricky Gervais não é uma unanimidade. Longe disso. O estilo confrontador e aparentemente sem capacidade de sentir remorso de seus personagens —e de seu humor, em geral, que pôde ser visto nas cinco vezes em que apresentou o prêmio Globo de Ouro, assim como nos seus vários especiais de stand up e podcasts— já provocou muita controvérsia, já fez muita gente tentar cancelá-lo, sem sucesso, e já ofendeu uma boa parte do público. Para os ofendidos, Gervais tem uma resposta-praxe: "a ofensa é o dano colateral da liberdade de expressão".

Portanto, se você ainda não tiver familiaridade com o trabalho desse comediante inglês de 60 anos e ficar curioso por causa desta resenha, fica o alerta. Em "After Life", série que estreou no começo de 2019 na Netflix com seis episódios de meia hora cada, teve uma segunda temporada em abril de 2020 e agora chega ao final, com uma nova leva de seis episódios, Gervais é Tony, um jornalista de uma cidade pequena da Inglaterra que perdeu a mulher, Lisa, seu grande amor, por causa de um câncer.

O luto o domina, ele cai em depressão, tenta se matar (mas não tem coragem porque deixaria o pastor alemão que tinha com a mulher sem ninguém) e então adota uma atitude autodestrutiva e escrachada, sem a menor censura. Ele faz o que quer, fala o que vem à cabeça, bebe demais, não mede consequências.

Na primeira temporada, justifica esse modo de agir quando é confrontado pelo chefe, o editor do jornal, irmão de Lisa. "Não ligar para nada é o meu superpoder. Se alguma coisa der muito errada, eu sempre posso me suicidar."

Nessa nova temporada, Tony está lidando com mais uma perda, a do pai, que já morava em uma casa de repouso desde o início da série e não se lembrava mais de nada, mas que o filho visitava frequentemente. Lá, conhece e fica amigo de uma enfermeira, Emma, personagem de Ashley Jensen ("Extras", "Ugly Betty"), com quem tem uma relação platônica —ela está sempre disposta a dar uma chance a um romance com Tony, o que ele parece nem perceber muito menos cogitar.

Outra personagem fixa e interessante é a viúva Anne, papel de Penelope Wilton ("The Crown", "The Best Exotic Marigold Hotel"), com quem Tony se encontra quase todos os dias em um banco no cemitério onde tanto Lisa quanto o marido de Anne estão enterrados. Com ela, que também vive um luto, ele consegue ter algumas das conversas mais interessantes da série. Sem toda a raiva que sente do resto do mundo, mas sem desperdiçar nenhuma chance de fazer piada (isso nunca, em nenhuma situação, por mais deprimente que seja).

Aliás, descrevendo assim, pode parecer que "After Life" é só um drama, não uma "dramédia". Não é. Tem cenas, diálogos e personagens muito engraçados. A raiva toda do protagonista é uma das grandes fontes de bons momentos cômicos.

Nessa nova temporada, por exemplo, ele está em um café com o fotógrafo que o acompanha nas reportagens quando se irrita com um pai hipster falando altíssimo com seu bebê da maneira enjoada que alguns adultos usam para se dirigir às crianças de colo, como se tudo que eles fizessem fossem gracioso.

O tal pai, com uma voz bem de bobalhão, diz coisas como "você vai tomar todo o seu leite, dar um grande arroto e fazer um cocozão na fralda pro papai?". Tony discute com o sujeito, que se recusa a mudar o comportamento.

Então, para se vingar, passa a falar com o colega com o mesmo tom de voz, o mesmo volume e dos mesmos assuntos, para constrangimento geral. Em outro momento, ele vai a um bar medieval de outra cidade onde o pai pediu que suas cinzas fossem espalhadas e faz exatamente isso, quando o dono aparece e o expulsa do lugar "com essa sua sujeira". Tony atira o resto das cinzas no rosto do sujeito, que grita, enojado: "entrou um pouco na minha boca!". Tony completa: "espero que tenha sido o pau!".

O elenco secundário também é excelente, um bando de gente que não se parece com as pessoas que aparecem na TV e tem problemas bem mundanos.

Mas o fundamental para definir se esse é um programa para você é entender que tipo de protagonista desperta seu interesse. Se procura um herói, Tony não é para você. Não é um anti-herói também, desses poderosos e malvados que surgiram na tal "era de ouro" das séries de TV, Tony Soprano, Walter White, Don Draper. Nada disso. Tony Johnson, o Tony de "After Life", é um pouco preconceituoso, muitas vezes cruel e algo arrogante.

No entanto, na conclusão da série, sem fazer o estilo discursinho de autoajuda nem mudar sua essência, Tony tem uma revelação genuína. Que a vida é curta e frágil, e que vale o esforço para que seja, no mínimo, agradável. A cena final, inspirada e inesquecível, parece propor que, apesar do caos que é a nossa existência e da inutilidade da batalha diária contra o envelhecimento e a morte, devemos investir na possibilidade de ter um outro momento de felicidade, por mais fugaz que seja.

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