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MeToo pariu geração feminina que repensa as noções de consentimento

Romances e programas de TV se juntam à literatura feminista para trazer novas reflexões à tona

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Parul Sehgal
Nova York | The New York Times

Amor, sexo, dinheiro. Desejar, ouvir, ajudar. A narradora de "The Friend", romance de Sigrid Nunez premiado com o National Book Award nos Estados Unidos, trabalhou por algum tempo fazendo transcrições de sessões de terapia de casais.

"As mesmas palavras apareciam o tempo todo", ela aponta. "Eu ditava as palavras e ouvia o casal falar, e era capaz de perceber que a mesma palavra queria dizer isso para ele e aquilo para ela."

Poucas palavras estão tão abertas a interpretação incorreta quanto "consentimento", do latim, "consentire" —que significa, literal e quase perversamente, "sentir com".

E é em torno dessa palavra que a ética sexual contemporânea parece girar. "O sexo deixou de ser moralmente problemático ou não problemático; em vez disso, passou a ser apenas desejado ou indesejado", escreve Amia Srinivasan em "O Direito ao Sexo".

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A filósofa feminista Amia Srinivasan, autora de 'O Direito ao Sexo' - Nina Subin/Divulgação

Críticos de todas as bandas do espectro admitem que o termo é vital como "o padrão menos pior", em termos das leis sobre agressão sexual, como afirma o pesquisador Joseph Fischel.

Mas ele é conceitualmente tão estreito que pode enquadrar qualquer forma de sexo menos entusiástico como agressão, e ao mesmo tempo nada faz para lidar com a questão do sexo muitas vezes doloroso e insatisfatório que grande número de pessoas, principalmente mulheres, experimenta.

Minha tarefa aqui não é sepultar o termo, pelo menos não hoje, mas observar seus percursos e seu estranho magnetismo —e a nova colmeia de pensamento capacitado que ele provocou.

Consentimento sempre foi um conceito notoriamente provisório. Por gerações, o direito de consentir (a sexo, a um tratamento médico) foi negado às pessoas negras nos Estados Unidos. O estupro conjugal era legal, em alguns estados do país, até 1993 —e continuam a existir lacunas.

Romances, indagações filosóficas, livros para jovens e de literatura romântica, além de programas de televisão recentes vieram se juntar à robusta literatura existente no campo do feminismo e dos estudos de deficientes para indagar quem e o que o termo "consentimento" exclui, hoje.

Esses trabalhos manipulam a ideia e a complicam, avaliam seu crédito e a refinam. "O Consentimento", livro de memórias de Vanessa Springora, a série "I May Destroy You", de Michaela Coel, na HBO, "Minha Sombria Vanessa", de Kate Elizabeth Russell, e novos ensaios de Srinivasan, Fischel, Katherine Angel, Mariame Kaba, Melissa Febos, Maggie Nelson —todos eles trazem questões sobre consentimento. Como é que a palavra está sendo usada, por quem, e o que ela oculta? Existe um padrão melhor? Quais são as condições que nos permitem escolher livremente?

Esse conceito mais rico de consentimento que está se desenvolvendo não busca descartar o termo, mas indaga sobre sua primazia e sobre suas suposições. O que aconteceria se ele fosse reconhecido não só como uma transação entre indivíduos, mas, como sugere Milena Popova em seu estudo sobre o termo, "Sexual Consent", como algo presente constantemente em nosso emaranhamento com o mundo? Onde fica o nosso consentimento em relação à água que bebemos e ao ar que respiramos?

É sobre esse terreno instável que essas novas obras se assentam. "I May Destroy You" se baseia na experiência de uma abuso sexual sofrida por Coel, em torno da qual orbitam outras histórias de encontros sexuais ambíguos —"ladrões de consentimento", ela os chama.

Os momentos mais instigantes da série transcorrem em silêncio, nos rostos de personagens enquadrados em confusão muda, procurando que atitude tomar, que palavra aplicar àquele acontecimento e a si mesmos.

"O Consentimento", romance premiado de Annabel Lyon, acompanha, em parte, uma mulher perturbada ao descobrir que sua irmã, deficiente intelectual, quer se casar —ela tem capacidade de consentir? Em "Test Pattern", filme de Shatara Michelle Ford, a questão do consentimento se relaciona não só ao ataque de um desconhecido contra uma mulher mas ao comportamento supostamente protetor do parceiro dela, depois.

A aclamada escritora francesa Annie Ernaux precisou de 60 anos para produzir seu mais recente livro de memórias, "A Girl’s Story", sobre o trauma de sua primeira experiência sexual, porque a situação "era muito complexa". Ela afirmou que "se tivesse sido um estupro, eu talvez tivesse conseguido falar sobre o assunto mais cedo, mas jamais pensei no que aconteceu dessa maneira. Cedi, vamos dizer, por ignorância. Nem me lembro de ter dito ‘não’".

Tantas escritoras relatam essa história —a de perder a propriedade de seus corpos, desgastados desde a infância por toques, por provocações, pela agressão masculina. "Durante muito tempo, me senti confusa sobre a quem pertencia o meu corpo", escreve Febos em "Girlhood". "Se alguém desejava meu corpo, eu tendia a dá-lo à pessoa."

Springora, que teve um relacionamento com um notório escritor mais velho, escreve que "eu me sentia uma boneca, desprovida de todo desejo e sem qualquer ideia de como seu corpo funcionava, e que tinha aprendido uma coisa só: a ser o instrumento dos jogos de outras pessoas".

Não é só que esses trabalhos explorem as "áreas cinzentas" do consentimento. O que eles examinam é a forma pela qual o consentimento pode agir como cobertura, nas palavras de Popova, mascarando outros diferenciais de poder no relacionamento —porque alguém já "disse sim", ou por oferecer uma capa para outras violações.

É essa a história de "Minha Sombria Vanessa" e de "A Teacher", série do canal FX em que educadores predatórios cuidadosamente pedem permissão.

Mulher branca sorri
Escritora Kate Elizabeth Russell, autora de 'Minha Sombria Vanessa' - Elena Seibert

A retórica positiva da cultura do consentimento, com suas injunções para que as mulheres conheçam seus corpos e digam o que pensam, nos diz muito pouco sobre estados de ser como esses. O autoconhecimento é alardeado como uma espécie de blindagem –se você sabe do que gosta e o que pedir, não poderá ser explorada.

Em "Tomorrow Sex Will Be Good Again", Angel vincula essa crença ao que denomina "feminismo da confiança", com seu espírito ativista e horror à vulnerabilidade. Por sob isso, ela argumenta, persiste o velho negócio de tornar a mulher responsável pela violência alheia.

Ler todos esses livros em sequência é sentir uma confluência poderosa de ideias. "Temos de complicar a conversa sobre violência sexual, precisamos de uma linguagem sobre um ‘espectro’ de dados" (Kaba); precisamos de "palavras intermediárias" (Febos); precisamos aprender a dizer, e ouvir, não só um entusiástico "sim" ou "não" mas também um "talvez" (Angel).

Afinal, o sexo não deveria ser entendido como "um escambo livre capitalista" (Srinivasan), não como algo que extraímos de alguém, mas como algo que "fazemos e experimentamos juntos" (Nelson), uma "conversação" (Angel).

Essas autoras estão respondendo não só ao consentimento mas ao MeToo e à forma de conhecimento que o movimento produziu, sua retórica sobre a violência, suas expectativas quanto às chamadas "sobreviventes".

Muitas dessas obras invocam as ondas de artigos de opinião e depoimentos que inundaram a mídia social, e indagam a quem essas histórias serviram, que forma de solidariedade real elas criaram.

Em "I May Destroy You", por exemplo, a personagem de Coel, Arabella, rapidamente vê frustradas as esperanças que acalentava de encontrar conforto ao contar sua história online. Uma cautela hesitante com relação à narrativa une muitos desses relatos —especialmente a cautela quanto ao que Kaba, em seu livro "We Do This ’Til We Free Us", define como "confissão compulsória": o ônus de compartilhar a história do trauma que a pessoa viveu.

Angel escreve: "O MeToo não só valorizou a fala da mulher mas criou o risco de tornar obrigatória a exposição dos poderes feministas de autoafirmação, e a determinação pessoal de recusar a vergonha".

Em "True Story", romance de Kate Reed Petty, Alice, uma estudante de segundo grau, descobre ter sido atacada sexualmente quando estava bêbada e inconsciente, e tenta escrever sobre essa experiência no ensaio que está preparando para seu processo de admissão universitária.

De rascunho após doloroso rascunho, todos comentados por uma professora ("explore mais seu ponto de vista sobre o sexismo"), testemunhamos sua estranha e dolorosa consciência de que a expectativa é de que execute um ato de compreensão racional na página, embora ela se sinta na verdade perplexa diante do que aconteceu.

Mais tarde, ela é atormentada por uma amiga documentarista que insiste que ela "compartilhe" sua história.

Mas é claro que Alice compartilha sua história —ao seu modo. Ela escreve, como a Arabella, de Coel, como a protagonista de "Minha Sombria Vanessa", como Springora, que via suas memórias como uma armadilha para o homem que abusou dela, uma forma de "emboscá-lo nas páginas de um livro".

A frustração com a palavra traz apelos por mais palavras, palavras melhores. A suspeita quanto à narrativa gera uma profusão delas. Consentir –sentir com: a raiz etimológica talvez se aplique. E nessas obras, está sendo defendido um argumento sobre como proceder, mas com um espírito de exploração e incerteza.

Alguns versos de um poema de Eve Kosofsky Sedgwick citados por Nelson me ocorrem. São versos sobre a fala, mas poderiam ser sobre o toque. Estão repletos de deslumbramento, e são a um só tempo audaciosos e uma busca de permissão: "Em todo idioma, a pergunta mais adorável/ é, Você pode dizer isso?"

Tradução de Paulo Migliacci

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