Morre editor da Vogue que com Anna Wintour moldou mito de 'Diabo Veste Prada'

André Leon Talley foi um dos raros negros em posição de comando em um ramo dominado por brancos

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Vanessa Friedman Jacob Bernstein
The New York Times

André Leon Talley, editor de moda grandioso que derrubou barreiras no setor ao trocar o sul dos Estados Unidos da era da segregação pelas primeiras filas nos desfiles de moda parisienses, aplicando seu conhecimento enciclopédico sobre a história da moda e seu humor incisivo à conquista de papéis importantes como escritor, palestrante, apresentador de TV e curador, morreu na terça-feira, aos 73 anos.

Sua morte, depois de uma série de problemas de saúde, foi confirmada por seu amigo Darren Walker, presidente da Fundação Ford.

"André Leon Talley foi uma força singular em um setor no qual teve de lutar para ser reconhecido", disse Walker, definindo o editor como "um gênio criativo" e destacando sua capacidade de desenvolver uma persona púbica com base em seu "profundo conhecimento acadêmico sobre moda e design".

O ex-diretor da Vogue André Leon Talley em foto de 2010 - Carlo Allegri/Reuters

Apelidado de "o Único" pela revista The New Yorker por ser um dos raríssimos editores negros no topo de um campo de atuação notoriamente dominado por brancos e notoriamente elitista, Talley, que tinha 1,98 metro de altura, era uma figura inconfundível onde quer que estivesse.

Inclinado a um estilo pessoal dramático (ele gostava de usar capas, luvas e chapéus dignos da realeza), ele também ressaltava o drama em seus pronunciamentos ("meus olhos estão famintos de beleza") e nos trabalhos que mais amava. Cultivava um ar de empáfia, ainda que seus amigos estivessem cientes do sentimentalismo que trazia sempre à flor da pele.

Como disse a atriz e apresentadora de talk shows Whoopi Goldberg em "The Gospel According to André", um documentário de 2018 sobre Talley, ele era "tantas coisas que nunca deveria ter sido".

Foi recepcionista da revista Interview na era de Andy Warhol, chefe da sucursal parisiense da revista Women’s Wear Daily quando Joan Fairchild era a editora-chefe da publicação e diretor de criação e editor de Vogue na era de Anna Wintour.

Ajudou a selecionar o guarda-roupa de Michelle Obama quando ela se tornou primeira-dama, era amigo e conselheiro do estilista Oscar de la Renta e se tornou mentor da top model Naomi Campbell. Ele escalou Campbell para o papel de Scarlett O’Hara em uma sessão de fotos para a revista Vanity Fair que reimaginava "E o Vento Levou" com protagonistas negros, e isso muito antes que o setor de moda despertasse para seu próprio racismo.

Mais recentemente, Talley foi jurado no programa de TV "America’s Next Top Model", diretor artístico do grupo de varejo online Zappos, consultor artístico da startup de tecnologia do músico Will.i.am, e esteve envolvido seriamente no desenvolvimento do Savannah College of Art and Design, nos Estados Unidos.

Talley era presença frequente na Abyssinian Baptist Church do Harlem e, de acordo com o reverendo Calvin Butts 3º, o pastor da igreja, ele muitas vezes chegava acompanhado por celebridades como Mariah Carey e Tamron Hall, mas era conhecido pela seriedade de sua fé.

"Com toda sua celebridade e suas viagens pelo planeta, ele vinha à igreja nos melhores e nos piores momentos", disse Butts. "Vinha para o culto. Apoiava a igreja, era um doador generoso, e seus amigos o amavam."

Talley, que era assumidamente gay, vivia sozinho e não parece ter mantido uma vida romântica ativa não deixa herdeiros.

Kate Novack, diretora do documentário de 2018 sobre ele, disse que Talley "foi uma história clássica de sucesso americano", mas ressaltou que esse sucesso "teve seu custo".

"André é um dos últimos grandes editores que sabem para o que estão olhando, sabem o que estão vendo, sabem de onde as ideias vieram", disse o estilista Tom Ford no documentário. "André sempre tem alguma palavra diferente a dizer, e é um homem tão grande e tão grandioso que muita gente pensa que ele é louco. Mas é uma insanidade fabulosa."

André Leon Talley nasceu em 16 de outubro de 1948 em Washington, filho de Alma e William Carroll Talley. Desde os dois meses de idade, ele foi criado por sua avó, Bennie Frances Davis, em Durham, na Carolina do Norte, onde ela trabalhava como faxineira no campus masculino da Universidade Duke.

Ele cresceu indo à igreja e sendo educado para manter sempre os bons modos; idolatrava a família Kennedy e era obcecado pela França e pela possibilidade de fuga que o país parecia oferecer de uma cidade em que os alunos da universidade às vezes o apedrejavam quando ele atravessava o campus para comprar a revista Vogue e onde ele dizia ter sofrido abusos sexuais quando criança.

Talley se formou em estudos franceses na Universidade Central da Carolina do Norte e fez mestrado na Universidade Brown, onde apresentou uma tese sobre a influência das mulheres negras na literatura de Baudelaire e Flaubert e na pintura de Delacroix.

Um encontro acidental com a editora Carrie Donovan, então na revista Vogue, o convenceu de que precisava se mudar para Nova York, e em 1974 ele se apresentou como voluntário para ajudar Diana Vreeland no Costume Institute do Museu Metropolitano de Arte de Nova York, o Met.

Foi por intermédio de Vreeland, ele afirmou em suas memórias, "The Chiffon Trenches", lançadas em 2020 pela editora Random House, "que aprendi a falar o idioma do estilo, da fantasia e da literatura". Também foi por intermédio de Vreeland que ele entrou no mundo das revistas e que, na revista Interview, ele conheceu Andy Warhol.

"Ele não parava de tentar me agarrar na área da braguilha", diria Talley ao The New York Times mais tarde. "Não era um momento Harvey Weinstein. Andy era uma pessoa encantadora porque via o mundo pelo caleidoscópio de uma criança. Tudo era ‘puxa, nossa, uau’."

Na Interview, ele também conheceu Karl Lagerfeld, o estilista da Fendi, cujo gosto cultural e intelecto onívoros se tornaram referências para Talley, especialmente depois que ele começou a trabalhar para a Women’s Wear Daily e foi morar em Paris. Lá, ele desfrutava de noitadas glamorosas em companhia de Yves Sant Laurent e seus seguidores, alternando palácios de aristocratas e casas noturnas da moda.

E enquanto tudo isso acontecia, escreveu Talley em suas memórias, ele se protegia com sua "armadura" – especificamente, "meias altas de lã e mocassins elegantes", acompanhados por "camisas Turnbull & Asser".

Para ele, a moda era tanto inspiração quanto disfarce, camuflagem contra as estocadas racistas das quais era alvo, como por exemplo ser apelidado de "Queen Kong".

Foi só mais tarde, escreveu Talley, que ele compreendeu "as viseiras que tive de usar a fim de sobreviver".

No final da década de 1980, seu gosto extravagante e profundo conhecimento de moda atraíram a atenção de Wintour, de quem Talley se tornou conselheiro, amigo e contraparte, um vínculo com uma era passada, menos corporativa e menos orientada à busca do lucro. Ele aconselhava Wintour até mesmo sobre suas roupas para os bailes de gala do Met.

"O que recordo é que eu não era tanto assim a protetora dele", disse Wintour no documentário. "Meu conhecimento de história da moda não é ótimo, e o dele é impecável, e por isso acho que aprendi muito com ele".

Quando monstros sagrados da moda como Saint Laurent e Alexander McQueen deram lugar a estilistas mais tecnocráticos, Talley se viu excluído.

Havia "muita gente na indústria que realmente amava André por seu talento", disse Butts. Mas também "havia outros que exploravam seu talento para vantagem deles" e "jamais deram a ele o respeito que merecia como homem e o tratavam de modo condescendente".

Depois da publicação de seu livro de memórias, ele rompeu com Wintour, a quem acusou de o abandonar. (Em "The Chiffon Trenches", Talley dá a entender que ela desempenhou um papel um tanto parasitário em sua vida, roubando sua energia.)

Ele começou a ter problemas de peso quando sua avó morreu, em 1989, e nos últimos anos vivia quase isolado em uma casa em White Plains, no estado de Nova York, dormindo em uma cama que ganhou de presente de Oscar de la Renta. A casa se tornou objeto de um processo judicial no ano passado, quando o proprietário, um ex-amigo de Talley chamado George Malkemus, tentou despejar o inquilino. (Talley tinha um histórico de más decisões financeiras.)

No entanto, apesar de todas as suas queixas e desilusões, Talley continuava a acreditar no poder de um vinco bem colocado e de um sapato perfeitamente engraxado e na maneira pela qual os mais corriqueiros objetos podem transformar nossas mais profundas aspirações em realidade.

"Para o menino que eu era aos 12 anos, criado no sul na era da segregação, a ideia de um homem negro desempenhar qualquer papel que fosse nesse mundo parecia uma impossibilidade", ele escreveu em suas memórias. "Imaginar de onde vim, de onde viemos e onde estamos agora é maravilhoso. E, no entanto, é claro, ainda temos muito a progredir."

Tradução de Paulo Migliacci

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