Museu de Arte Naïf, no Rio, tem 6.000 obras sem destino após venda de sede

Peças estão em guarda-móveis, sem refrigeração ou controle de umidade, e muitas devem deixar o Brasil

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Rio de Janeiro

Há cinco anos funcionários do trenzinho do Corcovado escutam diariamente turistas perguntarem em diferentes idiomas onde fica o Museu Internacional de Arte Naïf, o Mian. Ao que respondem, às vezes com alguma mímica, que o museu está fechado. A pintura gasta da fachada, os vidros sujos e o jardim por aparar indicam que o casarão do século 19 já não é visitado há algum tempo.

Da calçada, é possível ver a penumbra no interior do prédio bem ao estilo neoclássico, tão comum no Cosme Velho, na zona sul do Rio de Janeiro. Desde a semana passada, a maior coleção de arte naïf do mundo não está mais no imóvel. O casarão foi finalmente vendido por R$ 4 milhões, inaugurando um novo capítulo na novela do Mian.

quadros armazenados em estantes impróprias e desorganizados
Acervo do Museu Internacional de Arte Naïf do Rio de Janeiro - Jacqueline Finkelstein/Acervo pessoal

As 6.000 obras de artistas de 120 países estão sem destino e foram parar num guarda-móveis, sem refrigeração ou controle de umidade. Ex-proprietária e diretora do museu, Jacqueline Finkelstein conta que ficou sem escolhas, vendo seu patrimônio diminuir durante os cinco anos em que o casarão esteve à venda. Fechado, o imóvel tinha um custo médio de R$ 6.000 para manutenção. Ela não revela a identidade do comprador, que pediu anonimato, mas diz ser uma empresa. Até o momento, nenhuma obra foi iniciada no local.

Nos últimos tempos, os esforços para a manutenção da casa, com o interior já deteriorado, impediam que Finkelstein tomasse uma decisão sobre o futuro do acervo. Desde 2016, pinturas de Heitor dos Prazeres e Lia Mittarakis estavam numa sala, sem as condições necessárias à preservação das telas. Finkelstein deseja vender o acervo –ou mesmo ceder em comodato– para alguma instituição pública ou privada.

O sonho de manter toda a coleção na cidade está cada vez mais distante. O Museu de Arte do Rio, o MAR, foi procurado, mas não houve interesse na compra. "Aqui no Rio as pessoas estão com medo de receber qualquer coisa, porque isso demanda ter mão de obra. O pessoal está com dificuldade de manter o próprio acervo", ela diz.

O momento é difícil para os museus cariocas. Em 2019, a prefeitura concedeu um aporte de R$ 451 mil para evitar o fechamento do MAR. Um ano antes, o Museu de Arte Moderna, o MAM, teve de se desfazer de uma tela do pintor americano Jackson Pollock para sair da crise.

De acordo com a plataforma Museus Br, do Instituto Brasileiro de Museus, o Ibram, 22 instituições estão fechadas ou foram extintas no Rio de Janeiro. É mais do que o dobro do número relativo a 2016, ano em que a cidade recebeu os Jogos Olímpicos –e o Mian encerrou as atividades.

Para o fim do mês, Finkelstein acerta os últimos detalhes antes de repassar ao Museu Histórico Nacional a maior tela de arte naïf do mundo, "Brasil, Cinco Séculos de Luta", de Aparecida Azedo.

Finkelstein decidiu que manterá no país 2.000 obras. Até o momento, a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Museu do Sol, de Penápolis, no interior paulista, mostraram interesse em receber parte dos quadros. "No Brasil, e principalmente no Rio, falta a cultura da cultura. E sobre arte naïf existe um desprezo. Acho que os europeus vão admirar mais a arte brasileira", afirma. Sendo assim, cerca de 4.000 telas devem deixar o país em breve. Ela já iniciou as tratativas com o Museu Naïve de Jagodina, na Sérvia.

Fundado em 1995 para abrigar a coleção do pai de Finkelstein, o francês Lucien, o Mian tinha em seu acervo obras de Miranda, Antonio da Silva e Maria Auxiliadora. O termo naïf é usado para designar um tipo de arte popular feita, muitas vezes, por artistas sem iniciação acadêmica. O primeiro sinal da crise veio em 2008, ano da morte de Lucien.

A prefeitura interrompera o financiamento de R$ 16 mil por mês, que ajudava a cobrir os custos do casarão. Sem a verba, o Mian fechou as portas pela primeira vez.

Em 2011, Tatiana Levy, filha de Finkelstein, assumiu a gestão do museu, integrando as exposições a programas educativos, o que provocou um aumento de público. Nessa época, a família chegou a comprar o casarão ao lado, visando a inauguração de uma biblioteca sobre arte naïf, que teria entrada pela praça do trem do Corcovado.

A prefeitura não liberou o projeto, alegando que a obra descaracterizaria o imóvel do século 19. Com o tempo, a estrutura do prédio cedeu e hoje está em ruínas. O imóvel foi vendido pelo valor de R$ 2 milhões também no fim do ano passado.

Por diversas vezes, a família buscou apoio do poder público –nas esferas municipal e estadual– e da iniciativa privada, mas durante oito anos nenhum patrocinador se sensibilizou pelo museu. A última exposição do acervo ocorreu em 2019, em parceria com a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Naquele ano, o Museu do Pontal havia sido inundado e o Museu Nacional, consumido pelo fogo.

"Arte Naïf - Nenhum Museu a Menos" surgia nesse contexto, apresentando a coleção Finkelstein ao lado de obras de Erika Verzutti e Dalton Paula. Apesar do sucesso de público, não houve verba para promover uma exposição itinerante. Ulisses Carrilho, organizador da mostra, lembra que as obras do Mian já não estavam bem conservadas.

Carrilho ressalta a importância da coleção, rejeitando o termo naïf, que ele considera pejorativo. "Os campos cromáticos explorados são muito interessantes. Dentro da representação, esses artistas ousavam mais no uso de cores calorosas."

Segundo ele, saber que parte da coleção está prestes a deixar o Brasil é motivo de tristeza. "Na arte dita naïf, o Brasil pode se ver. Lastimo muito, mas sei que há um desejo internacional por esse tipo de produção."

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