Descrição de chapéu Livros

Thiago de Mello dedicou sua vida e sua poesia a utopia militante pela natureza

Do combate à ditadura militar ao empenho pela preservação da natureza, escritor se desnudou em seus livros

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Etel Frota
Curitiba

"Somente sou quando em verso", afirmava o poeta em seu livro de estreia, "Silêncio e Palavra", de 1951. Fiel a essa declaração de princípios, longevo e prolífico, Thiago de Mello, morto nesta sexta, aos 95 anos, escreveu em poesia —que considerava uma "espécie de mal de nascença"— a crônica de sua vida, do nascimento às disposições para o próprio velório.

A conturbada vida do Brasil e da América Latina sempre foi a matéria-prima principal para seus versos. Estão incluídos aí os poemas do período no Chile, como adido cultural da embaixada brasileira e depois como colaborador de Salvador Allende.

Depois da queda de Allende, cujo mandato, iniciado em 1970, foi interrompido por um golpe de Estado em 1973, Thiago de Mello escreveu —"tangido pelo incêndio monstruoso que lavrou na cordilheira dos Andes"— a poesia do exílio, a partir de Argentina, Portugal, França e Alemanha, de 1973 a 1978.

Finalmente, vestido com a bata branca da qual nunca mais se despiria, voltou ao Brasil e à sua floresta, para viver nas casas desenhadas por Lucio Costa, arquiteto responsável pelo Plano Piloto de Brasília, o amigo que foi "a delicadeza, em toda a sua riqueza e profundidade".

OS LIVROS

Amadeu Thiago de Mello, nascido em Barreirinha, no Amazonas, em 30 de março de 1926, aos 15 anos migrou para o Rio de Janeiro, para estudar. Em 1950 deixaria o curso de medicina, na praia Vermelha, para mergulhar na literatura.

Antecedendo as primeiras publicações autorais, criou com Geir Campos a Edições Hipocampo, revista artesanal, literalmente feita à mão, com uma tiragem de cerca de cem exemplares por edição. O projeto durou dois anos, teve 20 edições e publicou, entre outros grandes nomes, Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Ledo Ivo e Carlos Drummond de Andrade.

Pela Hipocampo, o poeta lançou seu "Silêncio e Palavra", em 1951. Álvaro Lins, um dos nomes principais da crítica literária brasileira de todos os tempos, saudou a publicação. "Com 26 anos, e um só livro publicado, o senhor Thiago de Mello bem demonstra, todavia, que já se acha em condições de se situar na primeira linha da nossa poesia contemporânea."

Entre poesia, prosa, ensaios e discos, Thiago de Mello publicaria, ao longo da vida, cerca de 30 títulos. O auge de sua produção se situa entre 1964 e o começo dos anos 1980.

"Faz Escuro Mas Eu Canto", livro em que inaugurou seu mais célebre poema, "Os Estatutos do Homem", teve sua primeira edição em 1965, pela Civilização Brasileira. Em 2017, a editora Global lançou a 24ª edição. Esse livro recebeu, em 1966 —em plena vigência da ditadura militar— um desafiador prêmio da APCA, a Associação Paulista de Críticos de Arte.

homem branco idoso sem camisa em barco
O poeta amazonense Thiago de Mello é retratado no rio Andirá em 2015 - Rodrigo Sombra

Como tradutor, teve enorme relevância na versão e divulgação de mais de uma dezena de poetas de língua espanhola, em especial do chileno Pablo Neruda e do nicaraguense Ernesto Cardenal. Traduziu para o espanhol obras de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Teve sua própria poesia traduzida por Neruda e ganhou dezenas de outras versões ao redor do mundo.

Ele se despediu dos leitores, pela primeira vez, em 1996, com o livro "De uma Vez por Todas", lançado pela Civilização Brasileira.

Voltou em 1998 com "Campo de Milagres", pela Bertrand Brasil, o livro que "não estava no meu programa", em que publicava os "poemas que não me deram sossego nestes dois últimos anos". Finalmente, em 2015, com um novo "Acerto de Contas", pela editora Global, cujo último poema inicia reiterando seu verso de estreia –"estou e sou nos meus livros/ nada mais tenho a dizer".

"Agora vale a verdade,/ decretei e agora canto/ bem alto, porque é preciso./ Nunca o Brasil mentiu tanto." O depoimento do homem que escrevera em verso a segunda metade do século 20 e testemunhava —às vésperas dos 90 anos— as perplexidades das primeiras décadas do século 21, não obstante tenha sido indicado para o prêmio Jabuti, mereceu um clamoroso silêncio da crítica.

Nos últimos anos veio a reparação a esse relativo ostracismo. Em 2018, foi a personalidade literária homenageada pelo Jabuti. No ano passado, a 34ª Bienal de São Paulo "concebida como uma polifonia de vozes e visões a partir da produção artística contemporânea" tomou para si, como sugestivo título "Faz Escuro Mas Eu Canto". Quase 60 anos depois, tristemente se reatualizava o verso do poema de 1965.

OS FILHOS

Em 2013, o poeta falou a Claudio Leal, na Ilustríssima, sobre um texto em que trabalhava e que nunca foi publicado. Seus diálogos com Manduka, o primeiro filho (com a jornalista Pomona Politis), nascido em 1951, que recebeu o nome de Alexandre Manuel em homenagem ao padrinho de batismo, Manuel Bandeira.

Para Manduka, Thiago de Mello escreveu, em 1952, o "Romance do Primogênito". "Como saber que caminhos/ teus passos vão inventar?" Os passos de Manduka andaram juntos aos do pai em alguns momentos do exílio, e reinventaram para ele a vocação musical —foram parceiros em várias canções.

Mello, que, além de grande intérprete de poesia —a própria e a de outros poetas— amava cantar, teve poemas musicados por Pixinguinha, Ary Barroso, Cláudio Santoro, Sérgio Ricardo, Nilson Chaves, Daniel Taubkin, Monsueto, além do irmão Gaudêncio —músico, que fez sua carreira nos Estados Unidos, onde se exilara a partir de 1966.

O primogênito Manduka, "um pássaro que se calou", morreu precocemente, aos 52 anos.

A parceria musical viria a se repetir com Thiago —filho caçula, com Ana Helena—, também músico. "Nossa relação sempre foi de muito amor; somos amigos", diz o filho, que vive no Rio de Janeiro. No dia da morte do pai estava em Barreirinha, onde vem se ocupando com a restauração das casas projetadas por Lucio Costa, vendidas ao governo do Amazonas na década de 1990, patrimônio arquitetônico e cultural que vinha se deteriorando na floresta.

Os filhos Carlos Henrique, de 62 anos, (com Ayla) e Isabella, de 51 anos, (com Lourdinha), vivem também no Rio de Janeiro. Para sua única filha, cineasta, nascida no Chile em tempos de bonança, o poeta escreveu o "Trisabellário", que brinca com os versos do compadre Manuel Bandeira —"pra esperança pequenina/ da minha filha Isabella,/ estendo aqui uma campina/ em frente de sua janela:/ Isabella, bela, bela/ tu vais ver o que virá".

homem branco idoso sem camisa em barco
O poeta amazonense Thiago de Mello é retratado em sua casa em 2015 - Rodrigo Sombra

AS ÁRVORES

"Muito antes da ecologia ter sido transformada numa espécie de bandeira, o poeta Thiago de Mello já se colocava na vanguarda dos intelectuais que defendem com as armas da beleza e do bom senso a preservação das áreas naturais do planeta." Assim começava a apresentação de Ênio Silveira —diretor, à época, da editora Civilização Brasileira— da publicação de 1987, que compilava os livros "Amazonas, Pátria da Água" e "Notícia da Visitação que Fiz no Verão de 1953 ao Rio Amazonas e seus Barrancos".

O poeta foi incansável na defesa e celebração da vida na floresta amazônica e no lamento pelos malfeitos que testemunhou. Chorou em verso a morte de Chico Mendes —seringueiro e ativista acreano, assassinado em 1988. "Eis que a vida do homem/ é o que ele faz e fala,/ escreve e canta. Vives:/ dás fundamento ao porvir."

Militou pela causa da reserva de Mamirauá, "sério, abnegado e belo trabalho a serviço da preservação da floresta e do seu povo". Jamais perdeu a esperança. "Sim, continuo acreditando que a utopia tem o poder de vencer o apocalipse", declarou em 2016, na celebração dos seus 90 anos.

AS TRÊS COISAS QUE A PESSOA FEZ

Thiago de Mello morreu em decorrência do agravamento da doença neurológica que o vinha debilitando progressivamente ao longo dos últimos anos. O caboclo universal, filho de Pedro e Maria Mitoso, irmão de Gaudêncio, Maria Júlia, Ritinha, Eline e Cecéu se despede. Aquele que, tendo desistido de ser médico, se vestiu de outro branco, adotou outra ausculta e correu o mundo, sem nunca ter realmente deixado a floresta.

Thiago de Mello foi, até o final, o poeta em "permanente amanhecer e que crê na afetividade", na descrição do crítico literário Miguel Sanches Neto. Reafirmou, na festa dos seus 90 anos. "Eu não escrevo para iniciados, para literatos. Eu escrevo para o leitor."

O poeta teve dez casamentos. "Uns de papel, outros só de amor", declarou a este jornal. Fiel à sua vocação de apaixonado contumaz, viveu seus últimos anos em Manaus com a poeta Pollyanna Furtado, de 40 anos. Deixa viúva essa moça "parceira de vida e de poesia".

Cumpriu à risca a prescrição de seu amado Jose Martí, filósofo e poeta cubano —"hay tres cosas que cada persona debería hacer durante su vida: plantar un árbol, tener un hijo y escribir un libro". Deixa vários exemplares em cada modalidade e o legado de uma longa "vida/ pronta para ser usada./ Vida que não se guarda/ nem se esquiva, assustada/ para servir ao que vale/ a pena e o preço do amor".

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