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'Tornar-se Negro' mostra o horror do racismo pelo caminho da psicanálise

Clássico de Neusa Santos Souza que volta a ser publicado discute como ter dignidade diante de passado de discriminação

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Clélia Prestes

Doutora em psicologia social pela USP (Universidade de São Paulo), é especialista em psicologia clínica psicanalítica pela UEL (Universidade Estadual de Londrina) e psicóloga do Instituto AMMA Psique e Negritude

Em Cachoeira, na Bahia, nasceram Neusa Santos Souza, em 1948, e a Irmandade da Boa Morte, em 1820, organização de mulheres negras que demarca a memória e as lutas negras por libertação. Cachoeira elegeu no ano passado sua primeira prefeita negra, que passou a sofrer atentados, como outras parlamentares negras. Caráter distópico deste país negro que tem o racismo como uma de suas patologias.

Na pandemia, se escancaram desigualdades, resistências, emocionalidades. E as relações raciais ecoaram pelas análises e publicações. Surge, nesse cenário, a nova edição de "Tornar-se Negro", de 1983.

Psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza, autora do livro 'Tornar-se Negro' - Reprodução

Sua autora, baiana, negra, de origem pobre, criada no candomblé, se formou médica na Bahia e seguiu para o Rio de Janeiro, se estabelecendo como psiquiatra, psicanalista e escritora. Foi mestra na compreensão e no cuidado de pessoas com psicose. Suas obras são fruto de estudos, pesquisa e docência e da prática clínica em instituições psiquiátricas. Publicou artigos e livros, dialogou com entidades do movimento negro e integrou movimentações de reforma psiquiátrica.

Em "Tornar-se Negro", Santos Souza trata da emocionalidade de pessoas negras, dos efeitos nocivos do racismo e das possibilidades de cura passando por uma identidade politizada, além da importância de recontarmos e contextualizarmos nossas histórias.

"Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade", escreve ela.

Uma das referências do livro é Frantz Fanon, que também politizou o cuidado na saúde mental e discutiu como o racismo desumaniza pessoas negras e brancas, entre outras. No Brasil, há as publicações de Lélia Gonzalez, dos precursores Juliano Moreira e Virgínia Bicudo e das contemporâneas Isildinha Baptista Nogueira, Cida Bento e Maria Lúcia da Silva. Esta assina o novo prefácio no livro de Santos Souza, que inclui anexos sobre psicanálise e racismo.

"Tornar-se Negro" demonstra como referenciais brancos idealizados minam o reconhecimento da humanidade de pessoas negras. Nas histórias de negros e negras que ascenderam, há a constatação de que embranquecimento algum anula a prévia desumanização. O mito negro é outra categoria de análise, referente ao discurso ilusório que nega a história e naturaliza dominações, estruturando espaços sociais e funcionamentos psíquicos.

Um conceito central é o do ideal de ego, instância de estruturação do sujeito que, inspirada por modelos familiares e coletivos, medeia os discursos libidinal e cultural. O ego busca garantir a harmonia cumprindo exigências. Dadas as prerrogativas, a dignidade se torna um ideal previamente reservado ao grupo racial branco.

Para negros, há dois possíveis desfechos. Um é sucumbir ao apelo de embranquecimento. Podem se seguir conformismo, submissão, depressão, culpa, inferioridade, insegurança, angústia, timidez e ansiedade fóbica. São efeitos da dominação naturalizada que humilha e promove "uma ferida narcísica grave e dilacerante".

Um segundo desfecho é lutar por novas narrativas. Pode passar pela ilusória busca de aceitação por meio de relações afetivo-sexuais com brancos. Santos Souza conclui que a condição de cura, ainda na chave de luta, passa pela construção de outro ideal de ego, contextualizado na história e perpassado pela militância política e pela identificação com um rosto próprio.

O que é se tornar negro, então, diante de um passado de discriminação, desenraizamento e sofrimentos? "Ser negro é tomar posse dessa consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração", escreve Santos Souza. "Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro."

Tornar-se Negro

  • Preço R$ 44,90 (176 págs.); R$ 29,90 (e-book)
  • Autoria Neusa Santos Souza
  • Editora Zahar
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