Se algo atraía de maneira especial nos filmes de Mia Hansen-Love lançados até aqui no Brasil era, sobretudo, a sensação de que ali existia amor, paixão, sofrimento, variações —enfim, vida.
Eis o que, justamente, parece escapar a seu "A Ilha de Bergman": a vida. Substituída aqui pelo cinema, pelo amor ao cinema, pelo amor entre os dois cineastas, marido e mulher, que visitam a ilha de Faro, isto é, a ilha onde Ingmar Bergman vivia e que filmou em diversos momentos.
Sim, existe ainda o amor a Bergman, a sua obra. Um amor que se traduz, aqui, em fetiche. Estar na casa em que viveu o grande mestre sueco, observar seus móveis, dormir em seu quarto, mergulhar nas águas que envolvem a ilha, visitar locações célebres —tudo isso parece aproximar Tony e Chris da matéria misteriosa que constitui o cinema e, ao mesmo tempo, seu gênio.
Tony e Chris não são Bergman nem pretendem sê-lo —isso é bem claro. Mas é ali que buscam não propriamente inspiração, mas antes um ambiente adequado para produzir, discutir e, talvez, escrever os roteiros que têm em mente.
Não existe o clichê da criação como uma luz que desceria do gênio de Bergman para iluminar os pobres mortais. Nem a tortura de viver que o cinema de Bergman celebrizou. Talvez seja ao escapar desses clichês que Hansen-Love permite também que seu filme derive, por vezes, pelo mero turismo cultural.
Passeios de bicicleta, a sala de projeção particular, a paisagem, os olhares para a janela do moinho em que Chris se instala para escrever são exemplos, e infelizmente não os únicos, de cenas a que parece faltar tensão e, sobretudo, paixão.
Diferentemente de trabalhos anteriores da cineasta, aqui tudo é frio, inclusive as cores. Como se houvesse um imenso esforço para entrar no mundo de Bergman, mas esse fosse um esforço artificial —por mais que eu o admire, por mais que tente me aproximar dele. Bergman continua fechado para mim. É uma ilha cercada de mistérios, angústias, lugares frequentados por Bergman. Mas ele não está lá: é apenas ausência. Não inspira nem angustia. Não dói e não alegra.
Por vezes um comentário inspirado nos desperta: Que filme ver? Chris quer ver "O Sétimo Selo". Tony sugere "A Hora do Lobo". Chris refuga: "Não. Esse é aquele em que uma criança tem a cabeça esmagada." Chris fecha questão: "Se não for 'O Sétimo Selo', que seja um filme agradável". Tony também: "Isso não existe".
Ou então, a mulher lhes apresenta a casa onde ficarão: "Lá em cima fica o quarto em que foi filmado ‘Cenas de um Casamento’, o filme que provocou milhões de divórcios". Ok, vamos ao quarto, esperando pelo melhor. Ou vamos nos informar sobre a crença de Bergman em fantasmas, ou sobre seus casamentos, os inúmeros filhos... Tudo isso, no entanto, parece passar pelo casal sem contagiá-lo. Sua curiosidade é quase protocolar.
Talvez inteiramente protocolar, assim como Tony ao cumprimentar os fãs que vão assistir a uma sessão de seus filmes e tiram selfies depois. Assim como o Safari Bergman, que um jovem estudante de cinema sueco informa a Chris que pode perfeitamente ser pulado.
Em vez de angústia da criação existem as dificuldades da criação. Estão lá. Em vez da dor bergmaniana em face do amor, o ciúme contido. Quando Chris fala da beleza do estudante, Tony responde com um "chega", e o filme faz um corte seco.
Para dizer em poucas palavras, "A Ilha de Bergman" consegue livrar-se bem do culto associado à ilha de Faro. Mas o que consegue colocar no lugar pode ser por vezes agradável, eventualmente, mas não vai além disso. Para o que Mia Hansen-Love já fez, para o que se pode esperar de um filme dela, é pouco.
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