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'Autobiografia' celebra José Saramago, que faria cem anos agora em 2022

Livro de José Luís Peixoto se transforma ao longo da narrativa e, apesar do título, é intensa reverência a um outro

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Adriano Schwartz

Professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e autor de 'O Abismo Invertido'

Autobiografia

  • Preço R$ 69,90 (272 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria José Luiz Peixoto
  • Editora Companhia das Letras

Um resumo simples de "Autobiografia - Romance", de José Luís Peixoto, seria "é a história de um escritor iniciante, José, sem sobrenome, que recebe nos anos 1990 o convite para escrever a biografia de um autor consagrado, também José, o Saramago, e da interação entre os dois personagens". O resumo simples não se sustenta e logo o leitor percebe que há muito mais do que isso se passando ali.

Um segredo, inúmeras vezes mencionado, é revelado no terço final da história, outro só aparece nas últimas páginas. As descobertas vão alterando a compreensão do que está acontecendo e geram movimentos de reconfiguração do enredo. O que não se altera é a gigantesca presença do autor de "Ensaio sobre a Cegueira" e "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" na obra toda.

O "arquivo" Saramago é esquadrinhado a fundo e recriado das mais diversas formas dentro do texto –relatos pessoais, amores, lugares, manias, situações ficcionais, personagens, modos de escrever, estratégias narrativas e usos peculiares do narrador são absorvidos, processados e transfigurados.

Quem acompanhou durante anos a periódica publicação dos "Cadernos de Lanzarote" reencontra aqui o cotidiano e a intimidade do autor e de sua mulher, Pilar del Río, também transformada em personagem, e esse reencontro é tratado com muita delicadeza por Peixoto. Os momentos em que Saramago "ele mesmo" surge estão entre os mais interessantes do texto.

De todo o "arquivo" literário retrabalhado, é especialmente forte no romance, por razões distintas, a presença de "O Homem Duplicado", do "Manual de Pintura e Caligrafia" e de "O Ano da Morte de Ricardo Reis".

É do último, por exemplo, que sai um claro modelo, mas também Lídia, uma das protagonistas da obra, o hotel Bragança ou até um "quem?", que surge solto e interrogativo no final de um parágrafo, a repetir a brincadeira sonora de seu predecessor com o borgiano "Quain", tão marcante para aqueles que admiram a que é, para tantos, a narrativa mais bem acabada do escritor português.

É difícil pensar em uma forma de homenagem mais bonita do que escrever um livro chamado "Autobiografia" que seja tão intensamente sobre um outro. Se estivesse vivo, Saramago completaria cem anos em 2022 e essa circunstância torna ainda mais especial o volume —publicado em Portugal em 2019— neste momento.

Por outro lado, por mais engenhoso que seja —e é—, um livro assim ambiciona uma certa "vida própria". É o que ocorre em "O Ano da Morte" com o Fernando Pessoa e o Ricardo Reis (sei, é estranho misturar Ricardo Reis e "vida própria") revisitados por Saramago –estão lá e já não estão mais. Em "Autobiografia", às vezes isso não acontece e o leitor presta mais atenção no material sendo modificado e no jogo irônico com esse processo do que na modificação.

Tal "desvio" não impedirá, contudo, que ele aproveite a leitura desse texto tão bem construído que, a seu modo, tenta lidar com a epígrafe que retira de um diário de Saramago e da qual cito o trecho final. "Este Narciso que hoje se contempla na água desfará, amanhã, com sua própria mão a imagem que o contempla."

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