Descrição de chapéu BBC News Brasil machismo

Como nasceu música de Chico Buarque gravada por Nara Leão e 'acusada' de machismo

Compositor afirmou recentemente que não interpretará mais a faixa por concordar com críticas feitas por feministas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Shin Suzuki
São Paulo | BBC News Brasil

"A música popular tem uma vida curta", diz Chico Buarque, no ano de 1972, à revista Realidade. O cantor comenta na entrevista que tem controle limitado sobre o destino do que compõe.

"'Com Açúcar, com Afeto', por exemplo, virou anúncio de bombom, açúcar e afeto. O que importa é o momento da criação. Componho aquilo que quero. Depois a canção será consumida ou não, mas não como simples objeto e, de preferência, jamais como mero adorno."

Cinquenta anos depois dessa declaração, "Com Açúcar, com Afeto" não teve vida curta nem se tornou mero adorno. É parte significativa de uma obra que se tornou clássica —ao mesmo tempo que é questionada nos últimos anos, como outras faixas do repertório de Chico, pela representação da mulher na letra.

bebê, mulher e menina em foto preto e branca
Nara Leão canta 'A Banda' com Chico Buarque em fotografia de 1967 reproduzida na biografia 'Ninguém Pode com Nara Leão', de Tom Cardoso - Reprodução

Em sua participação no documentário do Globoplay "O Canto Livre de Nara Leão", Chico Buarque afirmou que não vai interpretar mais a faixa —embora ela já não figure há décadas em suas apresentações ao vivo— por concordar com as críticas feitas por feministas.

"Vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim", diz ele.

"Com Açúcar, com Afeto" foi composta em 1966 a pedido de Nara Leão, uma das mais expressivas figuras da bossa nova, mas que tentava se descolar do movimento buscando novas referências artísticas.

Após a vitória na segunda edição do Festival de Música Popular Brasileira com "A Banda", escrita por um Chico Buarque de 22 anos, ainda estudante de arquitetura, a cantora capixaba encomendou ao novo parceiro musical uma composição para seu disco seguinte.

Nara queria uma canção dentro da tradição que hoje é definida como sofrência, em que alguém (na maioria das vezes uma mulher) padece por suas decepções amorosas e narra mágoas e desilusões na letra.

Para dar uma ideia do caminho imaginado para a música, a cantora indicou a Chico sambas antigos de Assis Valente, como "Camisa Listrada", além de "Ai! Que Saudade da Amélia", de Mário Lago, e temas de Ary Barroso que retratavam mulheres submissas infelizes. Todos, à época, já considerados pertencentes a uma "velha guarda".

"A Nara deu uma receita muito direcionada para a ideia de 'Com Açúcar, com Afeto', quase uma receita de bolo. A Nara especificou que tipo de mulher ela queria que fosse a personagem da música", diz Dimas Lamounier, que escreveu o livro "Chico com Todas as Letras". "E essa foi a primeira música do Chico com eu lírico feminino, algo que seria uma marca dele."

"Com Açúcar, com Afeto" tem uma dona de casa como narradora que oferece o conforto do lar ("fiz seu doce predileto" e "logo vou esquentar o seu prato") para tentar dissuadir o marido da vida de farras ("no caminho da oficina/ há um bar em cada esquina") e de atenção para outras mulheres ("olhando as saias/ de quem vive pelas praias").

Na entrevista para o documentário sobre Nara Leão, o cantor não especifica quais feministas fizeram as críticas sobre "Com Açúcar, com Afeto" e quais fatores levam a concordar com elas (sua assessoria informou que ele não vai comentar esse questionamento).

Nas redes sociais, mulheres vieram a público para dizer que se consideram feministas e, ao mesmo tempo, afirmam não ver na música uma defesa de um status quo de submissão feminina.

Linha de raciocínio semelhante está em trabalhos acadêmicos sobre a música, sempre analisada por ser o marco zero de um cancioneiro que valeu a Chico Buarque o hoje contestado título de "conhecedor da alma feminina".

"A mulher de 'Com Açúcar, com Afeto' ainda está confinada a ser subserviente ao 'seu' homem. O que não significa que essa composição pregue ou vanglorie o machismo, pelo contrário, a produção de Chico pode ser entendida como um modelo de relação de gêneros a não ser seguido", diz a dissertação de mestrado de Andreia dos Santos de Oliveira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Uerj, de 2018.

Marcela Ulhôa Borges Magalhães, no artigo de 2009 "A Problemática do Feminino na Lírica de Chico Buarque", escreve que "o bom poeta não se vale da obra literária com a única finalidade de tecer críticas sociais". "Seria absolutamente inverossímil se uma voz que destoasse daquela do eu lírico de 'Com Açúcar, com Afeto' surgisse no texto para criticar a condição submissa e resignada da figura feminina."

Para Maria Helena Sansão Fontes, professora aposentada da Uerj e autora do livro "Masculino-Feminino em Chico Buarque", "o feminismo, com toda a razão, está no momento de rever algumas situações e dizer 'não'. Eu, como mulher, comungo disso".

"Agora, 'Com Açúcar, com Afeto' é de 1966. Naquele momento não havia essa visão do movimento feminista de agora. Nós já passamos por vários feminismos. Mas acho que o Chico estava à frente porque ele já tinha um entendimento da opressão sobre as mulheres", afirma Sansão Fontes.

"Um Chico Buarque que tivesse surgido hoje seria diferente. Temos que considerar que é uma obra consolidada naquele período e tem que se levar em conta o contexto da época. E ele evoluiu, a cabeça dele evoluiu, mas continua a mesma coerência em termos de denúncia dessas questões."

A cantora Fernanda Takai, que gravou a faixa em seu disco-tributo a Nara Leão, declarou nas redes sociais que não vai tirá-la do seu repertório. "Fiz a lista do meu novo show. Já tinha colocado 'Com Açúcar, com Afeto' e ela vai continuar. Adoro a canção, a história sobre como surgiu, muito bem escrita. Uma letra que dá voz a uma personagem. Um espaço bem delimitado na arte."

Ironicamente, uma das razões oficiais alegadas para proibir uma composição de Chico Buarque no período da ditadura no Brasil (1964-1985) foi desonrar "a reputação de todas as mulheres", nas palavras do censor.

Em julho de 1971, ele submeteu aos órgãos do governo a música "Bolsa de Amores", um samba à moda antiga composto para o disco de retorno do lendário cantor Mário Reis, considerado um dos precursores da bossa nova.

A música compara investimentos financeiros com a conquista de uma mulher em versos como "comprei na bolsa de amores/ as ações melhores/ que encontrei por lá/ ações de uma morena dessas/ que dão lucro à beça" e "bem me dizia/ meu corretor/ a moça é fria/ e ordinária ao portador".

O samba foi vetado pela censura da época sob a justificativa de que o autor usou "palavras comuns ao linguajar da Bolsa de Valores, mas que não se adaptam a uma mulher, principalmente em letra de música popular".

Em entrevista à rádio Eldorado em 1989, o cantor relatou que começou na época "a sofrer uns cortes bastante arbitrários. Tinha uma música que eu fiz para o Mário Reis e que não era nada, era brincadeira e eles proibiram alegando que era uma ofensa à mulher brasileira. Chamava-se 'Bolsa de Amores'. Era uma brincadeira que eu fiz com o Mário Reis porque ele gostava muito de jogar na Bolsa, tinha mania dessas coisas".

Um episódio mais recente envolveu a faixa "Tua Cantiga", do último álbum de estúdio de Chico Buarque, "Caravanas" (2017).

Flavia Azevedo, editora e articulista do jornal Correio, de Salvador, escreveu à época do lançamento que concordava com a sensação de que "Tua Cantiga" soava "datada" principalmente pela estrofe "quando teu coração suplicar/ ou quando teu capricho exigir/ largo mulher e filhos/ e de joelhos vou te seguir".

"Eu me deparei com uma canção contemporânea (de Chico Buarque) que não bateu como romântica para mim nem para outras mulheres. Mas o meu texto foi usado na época para atacá-lo e isso não me deixou feliz. Aquela não era uma crítica a Chico especificamente. Era uma crítica ao que ele percebeu como sedutor na boca de um eu lírico, pelo homem de 'Tua Cantiga'. Eu só quis dizer que não acho mais aquele cara da música um romântico", afirma ela.

Azevedo diz que considera "Com Açúcar, com Afeto" um caso diferente, mas observa que não se sente mais tocada pela narrativa da canção.

"Eu gosto de ouvir músicas e ler textos de outras épocas, com configurações hoje inadmissíveis. Jamais colocaria a mesma lente usada para 'Tua Cantiga' sobre uma obra da década de 1960, de 1970, porque é óbvio, a gente tinha outra configuração social. E gosto muito de olhar para essa letra de 'Com Açúcar, com Afeto' e não me sentir nem um pouco tocada por ela, porque ela já não me diz muito. Uma realidade já tão distante das mulheres."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.