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Entenda por que temos medo do pênis, rejeitado na TV, nos museus e no Grindr

Novo manual de etiqueta de nudes do app de pegação gay reflete séculos de medo do nu masculino pela história da arte

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Pinturas do artista Paulo Jorge Gonçalves, inspiradas em poses de garotos de programa Reprodução

Ribeirão Preto

O rapaz de codinome Sigilo não é esculpido como um deus grego, mas está quase lá. Sem a divisão em quadrantes, seu abdômen ainda é um só, mas os oblíquos já se separaram. Sigilo está longe de se parecer com Tony Ramos, mas sua pele, branca, é demarcada pelo contraste dos pelos. Virado de lado para a câmera, com os braços em evidência ​​—estes, sim, esculpidos e com as veias saltadas—, Sigilo dispensa uma camiseta. Não mostra o rosto, mas faz questão de informar que mede 182,88 cm, que pesa 98 quilos e, duas vezes, que é versátil ativo —isto é, prefere penetrar a ser penetrado.

"Só mais um cara sem camisa", diz Sigilo em seu perfil, ao lado do qual está outro ativo —ou melhor, Ativo, como grafa sua conta. Ele também esconde o rosto, detalha as medidas corporais e adianta que "se não respondi é porque não curti". Abaixo está outro torso. É o Sommelier de Pau, que explica em detalhes como atribui notas de zero a dez ao pênis dos outros rapazes.

Para os não familiarizados, estes são perfis de usuários do Grindr, um aplicativo de relacionamentos que, mais afoito que concorrentes como o Tinder, tem como objetivo principal promover encontros de sexo casual ​​entre homens gays —ou "fast foda", como se diz no app. Da mesma forma que a maioria dos usuários, Sigilo, Ativo e Sommelier de Pau não revelam a identidade. Sabem, afinal, que ali o que mais importa é o corpo. Nenhum deles, porém, exibe as nádegas ou o pênis.

É que o Grindr nunca permitiu o compartilhamento de nudes nos perfis, num paradoxo que os usuários dizem ser difícil de compreender, já que o app, restrito para menores de idade, permite até que eles indiquem quando fizeram o último teste de HIV e se estão ou não fazendo uso da Profilaxia Pré-Exposição, a PrEP, que previne a infecção pelo vírus e, para alguns, determina se o sexo será com ou sem preservativo.

Tudo parecia prestes a mudar, no entanto, quando o Grindr anunciou há três meses que permitiria baixar as cuecas. O app, no entanto, criou um guia de poses para orientar os usuários. É, por exemplo, permitido se fotografar nu, de costas, como um "Davi" de Michelangelo, mas os algoritmos são orientados a barrar uma fotografia na posição litotômica —a pose ginecológica, como os médicos dizem, ou o frango assado, no português do Grindr—, porque é "sexualmente sugestiva", dizem.

Grindr criou manual de etiqueta de nudes para orientar seus usuários, homens gays em busca de sexo casual
Grindr criou manual de etiqueta de nudes para orientar seus usuários, homens gays em busca de sexo casual - Reprodução

Ao tentar ditar o que é sexy sem ser vulgar e o que é vulgar sem ser sexy, o manual de etiqueta dos nudes gerou uma onda de críticas contra o Grindr, sobretudo por usuários americanos. Os rapazes afirmam que, com frequência, uma mesma pose rejeitada num determinado corpo acaba aprovada em outro. Eles atribuem a prática a racismo, gordofobia, xenofobia e até a homofobia por parte do app, que veio a público reconhecer o problema e dizer que está ensinando tanto os seres humanos quanto os algoritmos responsáveis por moderar as fotografias a não serem preconceituosos.

A contradição em torno da censura de nudes num ambiente voltado para o sexo, no entanto, extrapola os limites do Grindr e data de milênios atrás. A nudez masculina, afinal, é historicamente evitada, tanto nas esculturas e nas pinturas expostas em museus e galerias de arte quanto na televisão, no cinema e na fotografia. Isso porque, embora falocêntrica, a sociedade não tolera ver um pênis fora do tête-à-tête, do corpo a corpo, entre quatro paredes.

É uma contradição que atravessa até a prostituição, diz Paulo Jorge Gonçalves, artista que faz pinturas e bordados com base em suas fotografias de garotos de programa. Para não assustar e afugentar os clientes, os garotos não podem extrapolar em seus catálogos os limites impostos pelo manual de etiqueta dos nudes —não o do Grindr, mas o que eles próprios criaram, com as mesmas regras, e passaram a transmitir um ao outro no boca a boca, como se estivessem numa aula de marketing digital.

Do tanto que são reproduzidas, algumas poses ganham até nomes. Uma das favoritas dos clientes se chama "tirando geleia da boca", diz Gonçalves. De perfil, os garotos empinam a bunda, mas giram o quadril para esconder o pênis, numa posição quase idêntica à que Sigilo usa em seu perfil no Grindr, exceto por uma das mãos, que, claro, precisa ir aos lábios, o que permite flexionar os braços e destacar os músculos dos bíceps. A pose também não é muito diferente da que muitos ostentam ao se fotografar para o Instagram, onde anônimos viram celebridades por causa do corpo esculpido e instigam seus seguidores com uma nudez que, por ser contida, nunca se desgasta.

Não é à toa que, ao pensar em nu masculino, a memória que primeiro vem à mente de boa parte das pessoas seja a das esculturas gregas. Além de terem esculpido o padrão de beleza que rege o desejo sexual contemporâneo ocidental, a arte grega é até hoje umas das únicas com permissão para expor um pênis nos museus. Embora movimentos como o Renascimento tenham resgatado a cultura grega, a nudez masculina, um de seus principais elementos, ficou de fora da produção artística desse período e dos que vieram depois.

Esculturas gregas na mostra 'Os Mármores de Torlonia', que ocorreu em Roma, na Itália, em outubro de 2020 - Yara Nardi/Reuters

O motivo, consenso entre boa parte dos historiadores da arte, é o machismo que estrutura a sociedade desde os primórdios. Se a mulher, presa dentro de casa, não tinha direito nem sequer de aprender a ler ou escrever, eram os homens quem normalmente estava por trás das telas. Eram eles, também, que financiavam a produção artística, que, naturalmente, passou a explorar à exaustão o corpo feminino —ainda que, pelo pudor imposto pela Igreja Católica, a nudez não pudesse se prestar à beleza ou ao sexo e viesse disfarçada em retratos dos mitos da Antiguidade e das passagens bíblicas.

Em consonância com o machismo, os historiadores lembram ainda da homofobia como fator decisivo para que as artes visuais sejam tão mal resolvidas com a nudez masculina, principalmente com a imagem do pênis. É que, mesmo à revelia das barbáries cometidas pela Igreja na Idade Média, ainda prevaleceram na sociedade renascentista, como hoje, doutrinas que reprovam a homossexualidade, ligada aos artistas que se debruçavam sobre o corpo masculino para além de necessidades acadêmicas, como fez Leonardo Da Vinci numa de suas obras mais memoráveis, "Homem Vitruviano".

Réplica de 'Homem Vitruviano', desenho feito por Leonardo Da Vinci em 1490
Réplica de 'Homem Vitruviano', desenho feito por Leonardo Da Vinci em 1490 - Divulgação

Prova disso é que a Globo, por exemplo, levou quase 60 anos desde sua criação para exibir um nu frontal masculino, visto no ano passado durante a segunda temporada de "Verdades Secretas". A emissora, porém, explora a nudez feminina há décadas. No início dos anos 1990, pôs a modelo Valéria Valenssa para sambar nas vinhetas da Globeleza vestindo nada mais que uma fina camada de purpurina. Na mesma época, um pouco antes e um pouco depois, atrizes já desfilavam com os seios à mostra em aberturas de novelas como "Tieta" e "Mulheres de Areia". Enquanto isso, os galãs até tiravam a camisa para exibir os músculos, mas nunca eram retratados pelados.

A diferença entre as formas de retratar um homem e uma mulher na arte é chamada por pesquisadores de "male gaze", ou olhar masculino. É um conceito criado por Laura Mulvey, crítica e professora de cinema britânica, ainda nos anos 1970, quando boa parte das atrizes que hoje sustentam movimentos como o MeToo ainda sofriam os abusos que viriam a denunciar. Num ensaio que se tornou a pedra fundadora da crítica feminista à indústria de Hollywood, Mulvey afirma que, como a câmera sempre estava nas mãos de um homem, quase sempre branco e heterossexual, naturalmente as mulheres seriam tratadas como objetos e teriam seus corpos sexualizados.

Valéria Valenssa sambava nas vinhetas da 'Globeleza' vestindo nada mais que uma fina camada de purpurina
Valéria Valenssa sambava nas vinhetas da 'Globeleza' vestindo nada mais que uma fina camada de purpurina - Renato Neto/TV Globo

Na Globo, a criação da Globeleza e a iniciativa de pôr mulheres nuas nas aberturas de novelas vieram mesmo da cabeça de um mesmo homem, Hans Donner, um designer austríaco radicado no Brasil que fez nada menos que a logomarca da Globo. Há, ainda, uma porção de exemplos estrangeiros. Um recente, que tomou as páginas de jornais, é a Mulher-Maravilha interpretada por Gal Gadot.

Em "Batman vs. Superman", a câmera, nas mãos de Zack Snyder, não perde uma chance de se voltar para as nádegas e os seios da atriz. O mesmo ocorreu em "Liga da Justiça", em que Snyder foi substituído por Joss Whedon. O diretor, que tinha comandado os dois primeiros "Vingadores", foi acusado de ameaçar a carreira de Gadot caso ela se recusasse a filmar uma cena em que Flash, vivido por Ezra Miller, deita e se esfrega sobre seu corpo. Já nos filmes dedicados à trajetória da personagem, o ímã da sexualização que ligava o corpo de Gadot à câmera parece ter sido destruído —a direção, agora, tinha passado para as mãos de uma mulher, Patty Jenkins.

Mesmo com a carreira ameaçada por diretor, Gal Gadot se recusou a filmar cena em que Ezrar Miller no papel de Flash se deita e se esfrega sobre seu corpo
Mesmo com a carreira ameaçada por diretor, Gal Gadot se recusou a filmar cena em que Ezrar Miller no papel de Flash se deita e se esfrega sobre seu corpo - Warner Bros. Pictures/Reprodução

O questionamento sobre o olhar masculino também ocorre nas artes plásticas. As Guerrilla Girls, coletivo feminista que se esconde atrás de máscaras de gorila e nomes de artistas mortas, vem há quase 40 anos travando uma cruzada contra o machismo nos museus. Elas afirmam que, num dos mais importantes do mundo, o Metropolitan, em Nova York, 76% das obras que têm nudez retratam o corpo feminino, embora menos de 4% dos artistas do acervo em exposição sejam mulheres. No Museu de Arte de São Paulo, o Masp, o índice de nudez feminina é de 60%, e o de artistas mulheres, 6%. As estatísticas são, respectivamente, de 2012 e 2017, quando foram realizados os últimos balanços na instituição americana e na brasileira.

Obra do coletivo americano Guerrilla Girls questiona nudez feminina no Museu de Arte de São Paulo, o MASP
Obra do coletivo americano Guerrilla Girls questiona nudez feminina no Museu de Arte de São Paulo, o MASP - Guerrilla Girls/Divulgação

A repulsa à nudez masculina nos museus é tamanha que o Whitney, também em Nova York, encomendou uma escultura de dois personagens que marcaram a literatura americana para instalar próximo à entrada. Quando a peça foi entregue retratando os rapazes sem roupa, no entanto, o museu decidiu guardar a obra no acervo. Os curadores afirmaram que, se tivesse sido deixada na rua, a obra teria sido vandalizada, mas muitos os acusaram de censura, dizendo que o objetivo não foi proteger, mas esconder o trabalho.

O caso, que ocorreu em 2015, ganhou grande repercussão na mídia por se tratar de um trabalho de um dos escultores americanos mais relevantes das últimas décadas, Charles Ray, que agora expõe uma versão platinada da escultura, feita de aço inoxidável, numa retrospectiva de sua carreira que está em cartaz no Met até junho.

No Brasil, não é diferente. Na internet, afinal, as regras valem para o mundo todo. Os algoritmos de redes como o Instagram censuram pênis, assim como os seios femininos, mesmo que suas diretrizes de comunidade digam que a nudez atrelada a obras de arte é permitida.

No mundo de carne e osso, por sua vez, são raras as exposições que encaram o assunto, e as que o fazem são pegas para Cristo. Foi o caso da mostra "Queermuseu", censurada uma semana depois de inaugurada em Porto Alegre, há cinco anos. Por dar visibilidade a obras que exploravam questões de gênero e sexualidade, a exposição sofreu ataques de lideranças políticas e religiosas alinhadas à direita, que fizeram barulho até que ela fosse fechada.

A censura velada não é de hoje. A exposição "Male Nude", que esteve em cartaz no início do ano passado na galeria paulistana MendesWood DM, esquadrinhou a nudez masculina de 1800 a 2021, reunindo obras que, na época em que foram produzidas, eram em geral rejeitadas por curadores e galeristas, principalmente as que foram criadas a partir dos anos 1970, quando os homens passaram a ser retratados nas artes plásticas não como deuses, santos, heróis bíblicos ou dissecações anatômicas para a medicina, mas como corpos que transam, diz Matheus Yehudi, um dos organizadores da mostra.

A mudança de paradigma, que ocorreu ao mesmo tempo em que manifestantes como os de Stonewall lutavam pelo direito de serem quem são, era visível na exposição. Lá, havia os torsos monocromáticos sobre os quais se debruçavam Andy Warhol e Robert Mapplethorpe, precursores da arte homoerótica nos Estados Unidos, e os garotos de Ipanema que Alair Gomes esculpiu em todas as suas curvas, músculos e pelos na esteira do que Herbert List, alemão, fazia nas praias europeias.

Além do interesse por retratar o corpo masculino, são artistas que tiveram suas carreiras marcadas por polêmicas, boa parte delas hoje vistas como fruto da homofobia. Gomes, ainda hoje o nome mais importante da fotografia homoerótica brasileira, é testemunho disso. Embora tenha feito nada menos que 20 mil fotografias de homens nus, o fotógrafo levou uma vida pautada pela discrição, quase como os rapazes que hoje escondem a identidade e pedem sigilo no Grindr.

Ao morrer estrangulado no apartamento de onde fotografava os banhistas a partir de sua janela indiscreta para a praia, o fotógrafo nem sequer chegou às páginas dos jornais. Seu trabalho tampouco. Não obstante as muitas tentativas de tornar sua obra conhecida, numa batalha que descreveu em seus diários como uma obsessão, Gomes teve suas fotografias expostas só dez anos depois de morto, primeiro em Paris, para só dali a outros dez anos chegar à Bienal de São Paulo.

A nudez masculina, dizem os artistas, é evitada não só por machismo ou homofobia, mas porque fragiliza o homem. É só olhar com atenção para o teto da Capela Sistina, indicam eles. Enquanto Deus e os santos vestem roupas e outros adornos que os protegem, os mortais são reduzidos à nudez, um contraste visto com clareza em "A Criação de Adão", de Michelangelo.

'A Criação de Adão', de Michelangelo, atesta que a nudez é sinônimo de fragilidade na arte
'A Criação de Adão', de Michelangelo, atesta que a nudez é sinônimo de fragilidade na arte - Reprodução

É sobre esse paradoxo que alguns artistas contemporâneos têm se debruçado. É o caso de Nino Cais, que explora a relação entre o corpo e o ambiente em que ele está inserido, e Francisco Hurtz, com desenhos que, traçados a partir de uma linha de espessura mínima, como se fossem uma planta arquitetônica, acentuam a fragilidade do corpo masculino. É, ainda, o caso de Luiz Roque, autor de uma série de esculturas de máscaras batizadas com os codinomes mais frequentes entre os usuários do Grindr. Ele agora produz, para a próxima Bienal de Veneza, um vídeo em que percorre comportamentos preconceituosos vistos no app, como a rejeição dos rapazes afeminados e o culto à virilidade.

O contraste também atravessa a cultura pop, ainda que de maneira menos explícita e, às vezes, encoberto por roupas. Em Hollywood, por exemplo, nos mesmos filmes que sexualizaram a Mulher-Maravilha, a câmera não se aproxima das nádegas esculpidas de galãs como Henry Cavill, o Super-Homem, embora eles usem uniformes de collant que teriam possibilitado tal retrato sem esforço.

Os atores são protegidos mesmo quando baixam as cuecas, na análise que o professor de cinema Peter Lehman, da Universidade do Estado do Arizona, nos Estados Unidos, faz num livro que escreveu sobre a representação do corpo masculino na mídia, o "Running Scared", ou correndo de medo. É que, embora a rejeição ao nu frontal tenha diminuído na última década com a ascensão do streaming, boa parte dos pênis vistos nos seriados são criados a partir de próteses de silicone ou computação gráfica. São, ainda, bem maiores do que aqueles que se vê no dia a dia, o que acaba por reforçar o estereótipo de que tamanho é documento e sinônimo de poder.

Mesmo "Verdades Secretas", da Globo, está longe de alcançar a equidade de gênero em termos de nudez. Apesar de ter tido 67 cenas de sexo, um número maior do que o de capítulos, a novela mostrou só um pênis, e uma única vez, o que não voltou a ser feito noutras produções até agora. Não foi, como se diz nas redes sociais, o suficiente para ouvirmos o som do tabu quebrando.

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