Festival de Berlim encolhe lista VIP e aposta em menos Hollywood e mais autores

Evento traz novos longas de François Ozon, Dario Argento e Hong Sang-soo e tem participação capenga do Brasil

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Milan Herms e Sophie Rois em cena do filme 'A E I O U - Das schnelle Alphabet der Liebe', na mostra competitiva do Festival de Berlim, a Berlinale

Milan Herms e Sophie Rois em cena do filme 'A E I O U - Das schnelle Alphabet der Liebe', na mostra competitiva do Festival de Berlim, a Berlinale Divulgação

Berlim

Em fevereiro de 2020, quando o Festival de Berlim vivia sua última edição presencial, dois assuntos dominavam os intervalos entre uma sessão e outra. Metade dos papos era sobre os filmes em competição, como de hábito em festivais, mas o resto das conversas era sobre um tal de vírus SARS-CoV-2 –que, após aterrorizar a população da China, começava a fazer estragos logo ao lado, na Itália.

Duas semanas depois, a Organização Mundial da Saúde anunciava que o mundo estava diante de uma pandemia de Covid-19, e o que aconteceu em seguida já é bem conhecido.

No ano passado, ainda no início do processo de imunização contra o coronavírus, Berlim decidiu fazer um festival 100% online, mas foi uma edição confusa e sem grande interesse midiático. O suficiente para que, para o evento deste ano, já com vacinação em massa, a organização insistisse em voltar ao formato tradicional, em carne e osso.

Tapete vermelho do Festival de Berlim é estendido no Palácio Berlinale às vésperas da abertura da 72ª edição do evento - Stefanie Loos - 8.fev.2022/AFP

A variante ômicron, porém, forçou a Berlinale a comprimir a festa. Em vez dos 11 dias habituais, terá neste ano só seis. As sessões terão metade da capacidade de público, e todos precisarão usar máscara, apresentar certificado de vacinação completa e fazer um teste rápido antes —o procedimento deve se repetir a cada dia. A curadoria, porém, manteve 18 longas em competição, obrigando jurados e jornalistas a se desdobrarem para ver as obras num espaço de tempo bem mais reduzido.

O evento começa nesta quinta-feira, sem grandes festas –que, aliás, neste ano estão vetadas–, mas um tapete vermelho enxuto ainda é permitido. E a primeira equipe a passar por ele será a do longa francês "Peter von Kant", dirigido por François Ozon –o filme se inspira na obra de Rainer Werner Fassbinder e marca a primeira colaboração do cineasta com Isabelle Adjani.

Estrelas hollywoodianas praticamente não darão as caras neste ano —os filmes escolhidos para a edição foram, em geral, de diretores de marca mais autoral. Na disputa pelo Urso de Ouro estão, por exemplo, o sul-coreano Hong Sang-soo, em mais um filme estrelado pela musa Kim Minhee, a francesa Claire Denis, que faz sua estreia na competição berlinense, e o austríaco Ulrich Seidl, que narra a decadência de um antigo astro pop.

Do total, sete são dirigidos por mulheres, incluindo Nicolette Krebitz, uma das apostas do cinema alemão atual. E, em mostras paralelas, serão apresentados os novos do francês Bertrand Bonello, sobre o mergulho de uma adolescente no mundo virtual, e do cultuado italiano Dario Argento, seu retorno às telas depois de dez anos sem filmar.

O Brasil não tem longas na competição principal, mas seis produções nacionais estão no evento. Na mostra Panorama, a segunda mais importante, o país é representado pelo longa "Fogaréu", de Flávia Neves, sobre o reacionarismo de uma cidade do interior, enquanto na seção mais experimental Forum, os longas nacionais são "Mato Seco em Chamas", que o goiano Adirley Queirós dirige ao lado da portuguesa Joana Pimenta, e "Três Tigres Tristes", de Gustavo Vinagre, seu terceiro longa em menos de um ano.

"Manhã de Domingo", de Bruno Ribeiro, disputa o prêmio de melhor curta da Berlinale, e na mostra Forum Expanded, o Brasil traz, no mesmo formato, "O Dente do Dragão", de Rafael Castanheira Parrode, e "Se Hace Camino al Andar", de Paula Gaitán.

Nada que se compare a outros tempos, como em 2020, quando 19 filmes com DNA brasileiro participaram do festival, contando as coproduções. É preciso, no entanto, entender o contexto. Além de a Berlinale estar menor, o audiovisual do Brasil sofre com o efeito arrasador da pandemia sobre a classe artística, e só agora começam a dar as caras os resultados do desmantelamento das políticas públicas para a cultura da era Bolsonaro e do caos interno em que a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, se meteu desde a posse do atual presidente.

Segundo Eduardo Valente, delegado brasileiro da Berlinale, o fato de ainda existir uma produção nacional relativamente volumosa –mais de 80 longas do Brasil se inscreveram no festival neste ano– se deve sobretudo a uma certa retenção do lançamento de filmes que foram produzidos ainda antes do governo Bolsonaro.

"Os longas do Adirley [Queirós] e da Flávia [Neves] foram filmados em 2018 e 2019, depois ficaram um bom tempo parados. Em parte, imagino, por causa da pandemia, mas sobretudo pela paralisação quase geral das atividades na Ancine", diz Valente. "Por conta disso existe um represamento de filmes rodados já há alguns anos e que só agora estão ficando prontos. Já o filme do Gustavo [Vinagre] foi feito independentemente, com equipe pequena, amiga, filmando como pôde, e conseguiu atingir um nível artístico e técnico para chegar em um festival como Berlim."

Vinagre vai estará no evento para apresentar "Três Tigres Tristes", mas quase desistiu da viagem diante das dificuldades financeiras e da falta de apoio governamental à promoção do cinema brasileiro no exterior. Na semana passada, fez um desabafo numa rede social, com a intenção de "desmistificar um pouco a vida do cineasta brasileiro".

"É 2022, há um genocida no poder, e o programa de apoio da Ancine a festivais não existe mais (afinal, um desgoverno que não se importa com a morte de seus cidadãos vai se importar com a disseminação internacional de seu audiovisual?)", ele diz na postagem.

Um dos poucos apoios que ele recebeu foi do Projeto Paradiso, iniciativa filantrópica do Instituto Olga Rabinovich para amparar o audiovisual brasileiro, que o auxiliou a arcar com a passagem –assim como ocorreu com Bruno Ribeiro. "Para cobrir o restante dos gastos, abrimos um financiamento coletivo", diz o diretor.

Seu curta, "Manhã de Domingo", foi viabilizado por um programa público municipal, da Secretaria de Cultura de Niterói, no Rio de Janeiro. "Os apoios em nível estadual e municipal são o que de alguma forma ainda sustentam uma parte da produção de cinema independente hoje. Mas eles não dão conta da carência gerada pela ausência de apoio em nível federal", diz Ribeiro.

Mas nem tudo parece perdido, ao menos no médio prazo. A Lei Aldir Blanc, aprovada para ajudar o setor cultural durante a pandemia, foi fundamental para vários cineastas continuarem trabalhando, e o resultado pode surgir nos próximos anos. E, no final do ano passado, finalmente a Ancine anunciou uma nova leva de editais do Fundo Setorial do Audiovisual, a primeira em três anos de governo Bolsonaro.

"Mas existe uma série de dúvidas sobre como vão ser executados", diz Valente, o delegado do país na Berlinale, sintetizando um certo receio do setor de que interferências ideológicas possam agir na escolha dos projetos contemplados. O cinema brasileiro resiste, mesmo em festivais internacionais, mas prossegue em meio a muitas incertezas.

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