Guerra na Ucrânia e clima bélico devem contaminar Semana de Moda de Paris

Temporada de desfiles chega ao cume com costuras para proteger o luxo e receio de reviver austeridade

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Paris

"Chega de compras em Milão, festa em Saint Tropez, diamantes na Antuérpia." O tuíte publicado pelo alto representante da União Europeia, Josep Borrell, sobre o desenho do primeiro pacote de sanções imposto pelo bloco à Russia após as primeiras horas de bombardeio à Ucrânia, foi logo apagado assim que as luzes dos desfiles da temporada de Milão acenderam na semana passada.

O recuo do executivo em pleno dia marcado como aquele que iniciou uma nova ordem geopolítica não simbolizou apenas uma síntese do estado de nervosismo, medo e o campo minado no qual a Europa pisa desde os primeiros dias de apresentações, que culminam a partir desta segunda-feira, em Paris, quando tem início a semana de moda francesa.

No caso específico da moda, motor das pequenas e médias empresas italianas e um setor que, na França, tem peso econômico maior que a aviação, há muito mais questões envolvidas no conflito no lado leste do continente.

Uma escalada bélica na região e, principalmente, o redesenho de forças que aproximou a Rússia de China e Índia —sendo o primeiro país o mais importante do consumo de bens de luxo, e outro, gigante dos tecidos crucial no chão de fábrica dos artefatos que adornam a locomotiva da alta-costura— tem poder de devastar as bases dos negócios que cunharam a soberania europeia na exportação dos costumes, desde os modos de vestir até o comportamento.

A sombra da guerra estacionada no continente remete ao início dos anos 1940, quando a escassez de insumos e a beligerância tomaram as ruas das capitais europeias na Segunda Guerra, sepultando a euforia da década anterior, quando tudo parecia voltar ao normal.

Agora, quando subirem à passarela Dior, Louis Vuitton, Chanel, Saint Laurent e medalhões que cravaram seu lugar no trono da moda com a estratégia de globalizar o estilo num mundo sem fronteiras, o sabor de sair de uma outra guerra, a pandemia de Covid-19, cederá lugar ao gosto amargo dos piores dias do século 20.

Contas já são feitas. A consultoria Euromonitor Internacional estima que, do ponto de vista de possíveis sanções à Rússia, a moda por ora não sofreria tanto. De acordo com dados levantados no ano passado, o país ocupou peso intermediário nas vendas globais de vestuário e calçados, em oitavo lugar. Quando o recorte é feito para o mercado de luxo, o país desce à 11ª posição.

"É esperado que categorias de consumo consideradas essenciais sofram os impactos mais relevantes e emergenciais", afirma o gerente de pesquisa da Euromonitor, Guilherme Machado. Segundo ele, ainda não há clareza sobre como as sanções vão repercutir no país e "muito menos na moda especificamente".

Do lado da Europa, numa manobra criticada nos bastidores por quem acompanhou a temporada de moda em Milão e por fashionistas que já se posicionam nas redes sociais, o bloco retirou a exportação de vestuário, acessórios e joias de luxo belgas das listas de sanções divulgadas no dia 25 contra oligarcas russos. O recuo de Borrell em sua mensagem passou a fazer sentido.

É especulado que diplomatas, pressionados pelo empresariado local, teriam pedido que Bruxelas poupasse o luxo dos bloqueios, uma informação logo desmentida pelo primeiro-ministro Mario Draghi.

"A Itália não fez nenhum pedido de exclusão de sanções. A posição da Itália está totalmente alinhada com o resto da União Europeia", escreveu em post no Twitter. O suspiro de alívio da França com a benevolência momentânea certamente cruzou as paredes do Eliseu.

Se a economia ainda é uma incógnita, já se precificam as mudanças dentro das marcas. Diretora para a América Latina do maior birô de tendências do mundo, o britânico WGSN, Daniela Dantas afirma que "o medo e a ansiedade são gatilhos para a queda de consumo, e, num contexto novo de violência, esses sentimentos ou adiam a intenção de compra ou causam consumo desenfreado, algo que não deve ser o caso a partir de agora".

Na prática, de acordo com ela, as pessoas devem buscar segurança e acolhimento. Nas roupas, Prada, Emporio Armani, Gucci e Fendi, já apresentaram em suas coleções um viés de tradição em alfaiataria com notas de pele à mostra, que partem da suposta liberdade conquistada nos primeiros passos de uma saída da pandemia.

Mulher usa roupas de verão enquanto desfila em passarela
Uma modelo com vestes da Prada durante a Semana de Moda de Milão de 2022, ocorrida em 24 de fevereiro - Tiziana Fabi / AFP

Curiosamente, as quatro grifes geridas por estetas atentos à geopolítica incluíram no repertório de seus desfiles a estética dos anos 1940, com saias lápis combinadas a blazers, nos quais se via insígnias em alguns modelos, e conjuntos amplos com ombros proeminentes tanto para homens quanto para mulheres.

O verde sombreado, o cinza chumbo, o preto e os tons de bege do trench tingiram essa mistura de rigidez e leveza proposta para o outono e inverno de 2022 e 2023.

A Gucci foi além e explorou blocos de cores combinados com propostas cobertas de "spikes", os espinhos de metal que o estilista Alessandro Michele já apostou nos anos Trump como escudos anti-ataque.

A alemã Adidas preencheu o desfile numa parceria que pôs o símbolo impresso nas roupas e nos acessórios, uma aliança entre italianos e alemães que é bem a cara do xadrez político.

É esperado que o mesmo pendor político em desfile-chave como o da Christian Dior marque o motor da saída do pós-Guerra com a criação do "new look", em 1947, e o da Balenciaga, gerida pelo estilista georgiano Demna Gvasalia, um dos grandes críticos do presidente russo Vladimir Putin, também —o designer já disse em entrevista que, com a ocupação russa na Geórgia, o autocrata tirou o seu próprio lar.

Nenhum traço de estilo que rememore os horrores da guerra será mera coincidência a partir de agora, segundo a doutora em história da arte e professora do Istituto Europeo di Design, Danielle Nastari.

Da mesma forma que ocorreu logo após os atentados de 11 de Setembro, a moda passará por um processo de limpeza em suas propostas, que devem pender para o minimalismo e o monocromatismo como extensões dos humores social, econômico e geopolítico, tripé das mudanças na moda.

"Com a possibilidade do conflito se alastrar não somente nas potências da Europa, o Ocidente como um todo será afetado. Além das cadeias de suprimento, podemos ver um direcionamento para a introspecção e ornamentação sem exageros das roupas", afirma.

"Não seria uma estética ‘dark’, mas algo de poucas cores e poucos detalhes que simboliza o luto generalizado."

Nestari ressalta, porém, que o próprio Ocidente, com suas estratégias de dominação e de estereotipar o Oriente como exótico em leituras fantasiosas propagadas pela cultura pop, estará na berlinda.

"A depender dos desdobramentos econômicos com as cadeias produtivas, o Ocidente terá de se colocar em seu lugar e entender também que, numa conjuntura de quebra de relações com países produtores de insumos, quem estará isolado é o lado de cá", diz ela.

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