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Policial se apaixona por travesti em 'Lovistori', HQ sobre transfobia

Apesar de tanta dor, Lobo e Alcimar Frazão conseguem encontrar sorrisos ocultos nas dobras do mundo real

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Lovistori

  • Preço R$ 79,90 (80 págs.)
  • Autor Lobo e Alcimar Frazão
  • Editora Brasa

Nos idos dos anos 1990, Lobo conversou com uma prostituta no calçadão do Rio de Janeiro. Foi um encontro talvez banal, desses de quem se aproxima de alguém para pedir um cigarro no meio da noite. O quadrinista vinha perambulando pela cidade, em busca de inspiração para os seus gibis.

Mas, apesar de meio mundana, a cena ficou fincada na memória do artista. Agora, décadas depois, voltou à tona na HQ "Lovistori", que a editora Brasa acaba de publicar.

Lobo parte da história contada por aquela mulher e, inventando o resto da trama, costura uma bela história de amor. Os protagonistas são Sereia, uma travesti que trabalha como prostituta no Rio, e seu amante Paixão, um policial. Alcimar Frazão, de "Ronda Noturna" e "O Diabo & Eu", assina as ilustrações.

capa de hq
Detalhe da capa da HQ 'Lovistori', de Lobo, publicada pela Brasa Editora - Reprodução

"Lovistori" é um gibi de drama. O leitor já imagina que tipo de final espera os personagens. Lobo e Frazão até poderiam ter dado um final feliz para o casal Sereia e Paixão, se aproveitando da literatura para imaginar um mundo melhor. Mas a proposta deles parece ser a inversa, contar uma história que, infelizmente, é factível num país como o Brasil, com tamanha transfobia.

A HQ serve de tapa na cara de uma sociedade que ainda aceita a violência contra pessoas trans e prostitutas. Reforçando essa mensagem, "Lovistori" inclui dois ensaios à guisa de epílogo, assinados por autodeclaradas "putafeministas". Monique Prada se pergunta que homem hoje assume que ama uma prostituta, uma travesti. Já Priscila Fróes lembra ao leitor que "talvez uma das maiores dores de uma travesti esteja na vida afetiva", já que "são raras as que de fato encontram um amor".

A simplicidade da narrativa é um dos trunfos de Lobo. É uma qualidade que requer experiência —algo que ele esbanja. Ele trabalha no ramo dos gibis há mais de 30 anos. Publicou suas histórias e editou também a obra de outros, tanto em revistas de quadrinhos quanto em editoras.

Um dos destaques da sua carreira foi a passagem pela Desiderata, casa que publicou uma importante geração de quadrinistas no início deste milênio, como Allan Sieber e Rafael Grampá.

Com toda essa experiência, aliás, Lobo acaba de abrir a sua própria editora, a Brasa. Os dois primeiros lançamentos são as HQs "Lovistori" e "Brega Story", uma obra do artista Gidalti Jr. Ambas tiveram financiamento coletivo no site Catarse. "Lovistori" contou também com o Programa de Ação Cultural, o Proac, edital do estado de São Paulo que financia projetos artísticos.

"Lovistori" é de certa maneira um spin-off —uma obra derivada— do gibi "Copacabana", que Lobo publicou em 2009 em parceria com o artista Odyr. Era justamente em busca de inspirações para aquela obra que Lobo flanava pelo Rio, uma de suas estratégias preferidas para trabalhar. Tanto "Lovistori" quanto "Copacabana" tratam de um mesmo universo carioca, duro e urbano.

Os traços de Frazão amplificam a já potente história de "Lovistori". Ele trabalha com nanquim no papel. Chama bastante a atenção o cuidado do artista com os detalhes dos quadrinhos —coisas como o sombreamento das dobras das roupas e a textura da madeira de um móvel no fundo da cena. A experiência da leitura beira o êxtase quando Frazão desenha o reflexo da paisagem do Rio no metal de uma arma, de ponta cabeça, uma metáfora visual para a violência que ele retrata.

O gibi é razoavelmente explícito em alguns trechos. Os autores não se esquivam de exibir o amor de Sereia e Paixão em sua expressão mais carnal. A intersecção entre o belo e o sexual talvez lembre o leitor do trabalho do quadrinista italiano Milo Manara, ainda que a técnica e o traço sejam diferentes em "Lovistori". E o efeito contribui para a proposta realista da dupla Lobo e Frazão.

Apesar de tanta dor, os artistas conseguem contrabandear alguma felicidade para a história, encontrando sorrisos ocultos nas dobras do mundo real. Lobo e Frazão sugerem, de alguma maneira, um mundo melhor que pode eventualmente existir —quando o país deixar para trás essa rotina de violência. Parece que, no final das contas, Sereia e Paixão têm alguma chance de serem felizes.

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