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Maíra Zimmermann

Luísa Sonza não é sem-vergonha, mas livre como deveríamos ser

O corpo e o sexo, a partir de escolhas individuais, deveriam ser totens, porém, continuam sendo tabus

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Maíra Zimmermann

Historiadora, especialista em moda, juventude e cultura pop. Doutora em História pela Unicamp, com doutorado-sanduíche pela London College of Fashion, autora do livro 'Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude' (Estação das Letras e Cores, 2013)

Luísa Sonza veio de Tuparendi, pequena cidade gaúcha. Em 2018 lançou "Rebolar", canção que bombou no YouTube. Meus preconceitos e eu vimos a guria dançando. Questionamos: "Como alguém que nem sabe dançar tem a audácia de lançar uma música justamente chamada rebolar?".

Aquela dança desajeitada me incomodou, mas fiquei mais importunada por não ter tido sororidade —reagi de forma automática. Fui machista.

Luísa Sonza com visual de game em 'Modo Turbo'
Luísa Sonza com visual de game em 'Modo Turbo' - Divulgação

"Puta, vagabunda, interesseira" são as primeiras palavras cantadas em "Intere$$eira" —canção que abre o álbum "Doce 22"— um desabafo sobre a enxurrada de críticas que recebeu de haters, principalmente após a separação do comediante Whindersson Nunes, em 2020.

Claro, até então ela era a Luísa, aquela do Whindersson. Como ousara ser Luísa Sonza e ponto? A cantora se recolheu, trabalhou duro com sua equipe —sempre referida— e entregou "Doce 22" em 2021, álbum que a consagrou como artista pop.

Lado A, músicas para dançar. Lado B, autorreflexivas, combinadas com sua evidente evolução como cantora, dançarina e performer, que aparecia a cada lançamento dos clipes ou "lyric videos" —e agora shows.

Claro, Luísa incomodou novamente. Seu corpo é constantemente vigiado e punido pela crítica, especializada ou não. "Vulgar, exposto, oferecido, exibido" são adjetivos adereçados às cantoras pop na mídia em geral, redes sociais ou especializada.

Cantar, dançar, interpretar —o machismo estrutural reage à sexualidade revelada em performance artística, não aceita o corpo feminino livre. Luísa celebra seu talento e sucesso em performances estonteantes no vídeo e no palco, perturba ao se entreter com o próprio corpo em uma indústria que idealiza, fetichiza e explora a mulher.

Aqui chegamos no centro da questão. O machismo estrutural construiu os estereótipos incrustados no tecido social. A polêmica se dá no entorno de um corpo que se veste e se move fora dos parâmetros do comportamento "correto" para a "mulher de bem". Ainda se reage, homens e mulheres, a qualquer exibição sexualizada, irrefletidamente interpretada como apelativa.

A revolução comportamental que se desenrolou nos anos 1960 questionou os padrões morais estabelecidos. Família, papeis binários de gênero, a reprodução de um estilo de vida pré-determinado. Muito se desdobrou daí, inclusive a angústia para gerações seguintes sobre o que fazer com essa liberdade. Quando Luísa Sonza —parte da geração Z— nasceu, Britney Spears era assolada pela mídia por exibir performance sexualizada.

Na música pop masculina, incluindo o funk e suas variações, o pênis e a virilidade são celebrados enquanto símbolos embutidos em metáforas nada sutis sobre potência e sucesso —carrões, roupas de marca, mulheres. O poder masculino está associado a um estilo de vida que emula êxito financeiro. A mulher é um produto adquirido a ser ostentado.

A indústria pop mudou —millennials e geração Z, nos negócios, participam não somente das ações, mas, das decisões, por mais que o dinheiro geralmente esteja na mão dos baby boomers e geração X. As redes sociais trouxeram autonomia e possibilidade de autogerenciamento da imagem para as e os artistas.

Luísa não inventou nada. Há décadas a indústria do entretenimento lucra com o corpo feminino. Sexo vende. Madonna chocou o mundo nos anos 1990, mas, parece, continuamos presas àquele discurso do passado. Marina Lourenço escreve que "Sonza pode até se enxergar como uma mulher livre, que manda e desmanda no próprio corpo, mas isso jamais anulará o fato de que ela vive numa sociedade que há séculos objetifica mulheres para fazer delas meros produtos rentáveis no mercado".

Ora, justamente por isso, Marina, precisamos parar de manter sob vergonha nossos corpos. Sexo e prazer não constrangem. Nós é que nos constrangemos para agradar antes o outro do que a nós mesmas. Não é possível categorizar um corpo como "bunda", isolando-a do todo. Corpo, que inclui a bunda, é político.

Por que nós mulheres reiteramos a sexualização do corpo feminino produzida pelo olhar machista masculino? O que esse corpo rebolativo no palco precisa para ser aceito e respeitado? Estar coberto? Não dançar de forma provocativa e sensual, não cantar sobre sexo? O corpo sexualizado serve apenas para o prazer do outro? Dos homens? Não pode servir ao autoprazer? O corpo exposto está necessariamente fragilizado?

Mariana Caldas, no artigo "Liberdade no Café da Manhã", publicado no portal Hysteria, refletindo sobre Sonza, questiona "por que uma mulher livre para receber, sentir e viver o prazer incomoda tanto? Uma mulher livre incomoda muita gente. Uma mulher livre para sentir prazer incomoda muito mais".

Ao encontro de seu pensamento, concordo que a hipersexualização imposta é o grande problema. Porém, "gozar é uma revolução, principalmente quando você é uma mulher, principalmente quando o seu corpo é uma manifestação das suas infinitas possibilidades".

O feminismo pressupõe uma cartilha de comportamento? Não podemos ser feministas usufruindo e exibindo nosso corpo para nosso próprio deleite? Por que a exibição do corpo feminino continua interpretada como ato para a satisfação masculina? A quem serve essa interpretação? Não podemos incluir a fruição no "female gaze"? Não cabe prazer na troca de uma sexualidade livre entre cantora e seu público, composto por mulheres e homens cis e as mais variadas identidades de gênero?

Na reacionária sociedade brasileira se destila a necessidade recorrente —independente do gênero— de julgar o corpo feminino. Quanto mais, por culpa produzida, nos odiamos —e odiamos a outra— mais nos submetemos à exploração do corpo feminino e, aí sim, a indústria lucra, ganhado muito mais com o ódio que desenvolvemos por nós mesmas. Amar-se e respeitar o corpo feminino são os grandes desafios. Ao criticamos a outra, em algum lugar, estamos falando de nós mesmas: de nossos desejos e frustrações.

Daqui a cem anos estudaremos nos livros de história o clipe de "Vai Malandra" da cantora Anitta, lançado em 2017, como uma quebra de paradigmas idealizados do corpo feminino. Na cena inicial, encaramos um close em sua bunda que balança exibindo celulite: a mulher mais gostosa do Brasil tem celulite e não esconde, não tem vergonha: "olha que sem-vergonha essa mulher!"

Talvez seja o momento de ressignificar o adjetivo sem-vergonha, transformando-o de xingamento em libertação. O corpo e o sexo, a partir de escolhas individuais, deveriam ser totens, porém, continuam sendo tabus, principalmente para as mulheres. Daí vem a nossa revolução.

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