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Artes Cênicas

'Misery', de Stephen King, vai bem no teatro com Mel Lisboa de vilã

Baseada em livro que já virou filme, peça mostra escritor sequestrado por fã como metáfora do mercado editorial

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Misery

  • Quando Até 27 de março. Sex. e sáb.: às 20h00; dom.: às 19h00
  • Onde Teatro Porto Seguro - al. Barão de Piracicaba, 740, São Paulo
  • Preço R$ 30 a R$ 80
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Marcello Airoldi, Mel Lisboa e Alexandre Galindo
  • Direção Eric Lenate
  • Link: https://bileto.sympla.com.br/event/70753/d/120345

Quando Stephen King escreveu "Misery", há 35 anos, ele já era um autor de sucesso. Entretanto, a rapidez com que ele se tornou uma celebridade, a profusão de fãs, mais a intensidade do sistema mercantil da literatura —que faria dele um dos autores mais vendidos no planeta— também o angustiavam. Em "Misery", isso aparece simbolizado na forma de um thriller de suspense.

O escritor Paul Sheldon é um fenômeno de vendas, seus livros, como é a tônica de muitos best-sellers, criam tramas que aprisionam o leitor num tipo de intensa conexão hipnótica com a narrativa. Contudo, no suspense de Stephen King, Sheldon é que é aprisionado por uma fã, a enfermeira Annie Wilkes.

A admiradora, totalmente enfeitiçada pela obra do escritor, tomada por aquele universo moldado para capturar sua atenção, faz dele um prisioneiro e o força a escrever um novo livro, corrigindo o rumo inesperado de seu último romance.

A coação da enfermeira, que obriga o escritor a produzir com uma arma na cabeça, sob efeito de potentes analgésicos e com as pernas inutilizadas, ou seja, sem nenhuma autonomia criativa, é fruto da psicopatia da personagem, mas é também uma metáfora grotesca de como funciona o sistema produtivo da indústria editorial.

O autor que consegue o feito de capturar milhões de fãs não deixa também de se tornar cativo deles, obrigado a reproduzir eternamente a fórmula que os encantou e que, é claro, gerou receitas milionárias —na obra de Stephen King, a agente de Paul Sheldon não é apenas uma personagem tangencial, ela é quase um duplo longínquo da enfermeira Annie.

Na montagem teatral protagonizada por Mel Lisboa e Marcello Airoldi tais aspectos reflexivos e simbólicos do suspense são muito bem trabalhados.

A encenação de Eric Lenate põe em funcionamento um tipo de máquina cenográfica —um palco giratório que é movimentado, à vista do público, por uma equipe de contrarregras. Assistimos, simultaneamente, ao desenvolvimento do suspense e ao movimento das engrenagens da maquinaria teatral.

Tal sintaxe da cena ecoa um dos temas da obra, que é a construção de narrativas, e também libera o público para a reflexão crítica. Sem deixar de lado a trama eletrizante, a montagem não se rende a ela e abre espaço para o pensamento crítico.

Em paralelo, contudo, a adaptação brasileira é bem menos eficaz em sua vontade de corrigir supostos preconceitos da trama original e do roteiro cinematográfico do filme, que estreou em 1990 e que rendeu um Oscar à atriz Kathy Bates.

Para retificar o que julgam ser uma representação rebaixada da mulher, aparentemente reduzida à ideia de uma psicopata mal amada, Mel Lisboa tenta propor uma Annie Wilkes mais dúbia, enfatizando sua solidão e ingenuidade. Cria, para isso, outro estereótipo.

Forçando um sotaque caricatural, a atriz faz da enfermeira uma jovem interiorana, infantil e simplória, vítima das circunstâncias em que vive —com bem menos nuances psicológicas e sem a forte determinação do moralismo religioso americano que a personagem original possui.

O empenho em corrigir a obra à luz de demandas contemporâneas soa como um tipo de atualização mal acabada do discurso. Um alinhamento frágil ao debate atual.

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