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No Festival de Berlim, François Ozon traduz Fassbinder para leigos

'Peter von Kant' abre primeira edição presencial do evento na pandemia homenageando o grande diretor alemão

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Berlim

O Festival de Berlim de 2022 começou com uma homenagem a um velho conhecido do evento. Não promovida pelo próprio festival, mas pelo filme de abertura. "Peter von Kant", do diretor francês François Ozon, celebra Rainer Werner Fassbinder, um dos mais importantes cineastas da história do cinema alemão, que viveu entre 1945 e 1982.

O filme, que disputa o Urso de Ouro, é livremente inspirado na peça e no longa "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", que Fassbinder apresentou na Berlinale há 50 anos.

Denis Ménochet e Isabelle Adjani no filme "Peter von Kant", de François Ozon, que tem exibição na Berlinale
Denis Ménochet e Isabelle Adjani em cena do filme 'Peter von Kant', de François Ozon, que tem exibição na Berlinale - Divulgação

Na trama original, Petra é uma estilista arrogante que vive uma relação tempestuosa com uma modelo de origem proletária, Karin, ao mesmo tempo em que mantém uma serviçal, Marlene, em regime de quase servidão. Na versão de Ozon, o protagonista é um homem, Peter, um cineasta igualmente esnobe, mas que se apaixona por Amir, um jovem aspirante a ator. Em vez de secretária, Peter tem um assistente, Karl, tão submisso e maltratado quanto a Marlene do filme original.

O material já rendeu no Brasil uma famosa peça nos anos 1980, com Fernanda Montenegro no papel da estilista. É um dos grandes estudos sobre dominação, poder e submissão nas relações interpessoais –expandindo para além da questão individual, é sobre quanto a lógica capitalista pode se impregnar nas pessoas, moldando suas atitudes e seu funcionamento emocional.

O texto é tão sofisticado que parece improvável que alguma adaptação (ao menos se for minimamente fiel ao material de base) resulte em uma obra ruim ou mesmo mediana. E Ozon consegue um resultado excepcional, como em seus filmes mais inspirados.

"Fassbinder foi muito importante para meu aprendizado como diretor, no começo da minha carreira", disse Ozon, em conversa com jornalistas em Berlim. "Estudei todos os seus filmes, sempre me interessei muito pelos aspectos éticos e estéticos de sua obra."

A ideia mais específica de adaptar "Petra von Kant" surgiu com a pandemia. No longa original, a trama inteira se passa dentro do apartamento da protagonista e tem só seis personagens, todas mulheres. "Durante a época do confinamento, na França todo mundo se indagava sobre como poderia fazer filmes nesse contexto e em que condições", disse o cineasta. "Aí revi ‘Petra’ e resolvi me lançar sobre a peça e o filme para um novo trabalho."

A versão de Ozon não é tão concentrada como a de Fassbinder. Há até cenas da rua do prédio onde Peter mora, e seu apartamento parece mais amplo. Mas o que fica mais nítido em termos de diferença entre a versão do francês e a do alemão está no tratamento estético que dão à história.

Fassbinder nunca escondeu de ninguém sua paixão pelo melodrama, que estava no centro de suas obras. Mas seu cinema trazia uma influência fundamental, que tornava seus filmes extremamente diferenciados, inimitáveis –incluía pequenos elementos distanciadores aos moldes dos propagados por Bertolt Brecht, resultando em um tipo de estranheza na encenação que evitava que o espectador se envolvesse por completo com as personagens. Era talvez uma preocupação para evitar que o público se esquecesse das questões sociais tratadas na obra e se limitasse só a sentir o drama individual apresentado.

O cinema de Fassbinder, muito estilizado, trazia sempre aspectos mais sombrios, não totalmente nítidos, ilustrando o desespero dos personagens e o quão doentia era a sociedade em que viviam. A Petra de Fassbinder, por exemplo, se declarava para Karin sempre de modo a fazer uma performance dessa situação para Marlene, ostensivamente em um gesto de humilhação da serviçal.

Já Ozon tem uma estética mais solar, palatável –é bem mais fácil de se identificar com suas personagens. E quando Peter se declara para Amir, ele parece fazer isso por uma paixão mais genuína pelo rapaz –ainda que seja, no fundo, mais um amor pela "posse" dele que pelo jovem em si.

Se o cinema de Ozon não é tão complexo em termos de observação pessoal e social, consegue um diálogo maior com o público em sua abordagem mais direta sobre o melodrama. Nesse sentido, seu "Peter von Kant" talvez seja um ótimo começo para algum não habituado ao estilo de Fassbinder se iniciar em sua obra –é uma espécie de "Petra von Kant" para leigos, ainda que de muitíssimo alto nível.

Hanna Schygulla, a grande musa do cineasta alemão, que interpretou Karin no original, desta vez surge em uma participação afetiva no papel da mãe de Peter. E a veterana Isabelle Adjani, que —com os excessivos procedimentos estéticos no rosto quase imperceptíveis desta vez— está belíssima, surge esplêndida como Sidonie, uma estrela dos filmes antigos de Peter.

O grande destaque do filme, no entanto, é Denis Ménochet no papel principal. Ele se entrega de corpanzil e alma ao personagem, e se a Petra de Fassbinder brechtianamente evitava propositalmente que nos enternecêssemos muito por ela, o Peter de Ozon consegue a adesão do espectador. Mesmo que tenha um aspecto altamente rejeitável, sobretudo na maneira cruel como trata Karl, é uma atuação tão visceral que é impossível não se compadecer de sua situação. Já dispara favorito ao prêmio de melhor performance.

Por enquanto, a primeira Berlinale presencial em termos de Covid tem funcionado bem. Com menos jornalistas e mais sessões, tem sido possível manter salas com 50% da capacidade de espectadores. A logística para possibilitar a testagem diária em todos os credenciados ainda parece um pouco confusa, mas é provável que seja só falta de intimidade com o novo procedimento e que, logo, tanto o evento como os participantes se acostumem com esse "novo normal" festivaleiro.

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