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Rafa Kalimann fala de guerra na Ucrânia sem nenhum critério, dizem especialistas

Enquanto influenciadores falham ao surfar em temas quentes, nomes como Casimiro inauguram postura de referência

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São Paulo

Enquanto as tropas russas avançavam sobre a Ucrânia nesta quinta, sob ordens do presidente Vladimir Putin, a influenciadora e ex-BBB Rafa Kalimann decidiu acabar com as dúvidas de seus mais de 3,2 milhões seguidores em cinco tuítes.

Sua tentativa de resumo começa assim "existe a organização que os EUA e muitos países fazem parte, que é a Otan, e existiu a URSS, que a Rússia fazia parte". O paralelo entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas salta aos olhos de qualquer interessado pela geopolítica do século 20, assim como chamou a atenção de diversos internautas e de Lucas Leite, doutor em relações internacionais e professor da Fundação Armando Alvares Penteado, a Faap.

"A União Soviética não era uma organização, mas um Estado", corrige. Logo em seguida, Kalimann diz que a Otan se mostrou mais eficiente nas últimas décadas que o bloco soviético. "Não necessariamente", diz Leite, desmanchando o conto.

"Até o final da Guerra Fria nunca houve um combate efetivo entre as duas potências para medir a eficiência da Otan, ela não foi posta à prova. Ela era um guarda-chuva de defesa mútuo dos países ocidentais em contraponto justamente, à União Soviética".

Entenda o conflito entre Rússia e Ucrânia

Na explicação da influenciadora, atacada em peso nas redes pelo comentário, o professor elenca uma extensa série de imprecisões que desconsideram a formação do Estado ucraniano, a situação inconclusa da guerra civil iniciada depois que Putin anexou a Crimeia em 2014 e "põe os atores como se fossem apenas pequenos peões, que se movimentam porque têm interesses que podem ser questionados de qualquer forma".

Além de ver o maior conflito europeu desde a Segunda Guerra Mundial transformado numa partida de "War", Leite ainda vê um juízo de valor quando a ex-BBB diz que a Ucrânia pendia mais para a Otan e que "para a Rússia, isso não é nada bom".

"Ela mesmo põe no começo do fio que não é especialista, que aquilo é opinião. Mas o que dá a base dessa opinião? De onde ela tirou aquelas informações?", pergunta Leite. Para ele, uma solução possível é que Kalimann consultasse ou retuitasse especialistas que destrincham uma porção de questões nas redes sociais.

A reação à apresentadora foi diametralmente oposta à da atitude do streamer Casimiro Miguel, que, nesta madrugada, convidou Tanguy Baghdadi, mestre em relações internacionais, para destrinchar o conflito entre Ucrânia e Rússia em uma extensa entrevista, para milhares de usuários ao vivo.

Casimiro, que é jornalista e comentarista esportivo —mas fala de comida, lancheiras infantis e outras mil coisas— em seus vídeos, parece ter entendido o assunto que tinha em mãos. "Eu vou fazer as perguntas mais idiotas possíveis, tá?", disse ao especialista que, pouco antes, estava na GloboNews. "O chat está lotado de molecada, você sabe como é, né? Desesperada."

A discussão remete ao senso de responsabilidade que, muitas vezes, é esquecido pelos influenciadores. Afinal, como aponta Fernanda Vicentini, professora de redes sociais da Escola Superior de Propaganda e Marketing, eles vivem em uma área cinzenta entre o pessoal e o profissional, já que são seu "próprio meio de produção".

Recentemente, casos como o do podcaster Monark —que defendeu o direito à criação de um partido nazista em programa do "Flow Podcast"— e do americano Joe Rogan —que, com uma entrevista recheada de desinformação, foi o pivô de uma crise no Spotify— demonstraram que, nas palavras de Vicentini, "não existe conversa de bar com milhões de pessoas".

Segundo a professora, não é o caso de Kalimann, que só não soube aproveitar bem o seu espaço e alcance. "A intenção é maravilhosa. Mas isso tem que ser feito com muita cautela. A melhor maneira de fazer isso é convidando pessoas que não têm essa visibilidade para falarem em seus canais", recomenda.

Além de Casimiro, Vicentini lembra o convite de Anitta à advogada Gabriela Prioli para discutir política em lives. A professora destaca ainda que a ex-BBB ainda não encontrou o seu caminho já que, depois da sua versão resumida da guerra na Ucrânia, compartilhou reportagens sobre o assunto e sobre ícones do voto feminino. "Ela ainda não encontrou um território para se apropriar. Pode ser que seja o feminismo mas, até agora, não existe nada que a valide a ser essa comentarista política que tentou ser agora."

"Os influenciadores parecem achar que o público tem todas as pessoas com o mesmo nível de educação e capacidade de interpretação. O que eles falam ali, uma pessoa toma como verdade e não vai consultar nenhuma outra fonte", acrescenta a professora. "O usuário não entende como um lado da discussão, mas como o real. Porém, o que está sendo relatado ali é uma experiência do real."

E em uma terra que ainda não tem leis definidas, ou que não conseguem acompanhar a velocidade da internet, esse tipo de ação gera reflexos na máquina privada —como foi o caso do YouTube proibindo Monark de criar novos canais e monetizar seu conteúdo.

Nesse sentido, para a professora, Casimiro inaugura um novo modelo de influenciador do pós-pandemia, que aprendeu as lições dos últimos anos de pós-verdade e fake news para transitar pelos ambientes que quiser com conforto.

"Ele é um cara seguro do que quer e sabe que tem de fazer escolhas, abrir mão de algumas coisas. Não vai se dobrar a certas coisas como vários influenciadores já fizeram, inclusive do ponto de vista estético", defende a professora, lembrando o cenário caseiro e as roupas cotidianas do streamer que vara madrugadas no Twitch —e com uma boa parcela de adolescentes sintonizados. Em outras palavras, ele se aproxima do espectador, traz assuntos importantes, mas delineia limites.

"Hoje as pessoas pagam muito dinheiro pela atenção. Dando audiência para uma pessoa criminosa ou totalmente equivocada, você está gerando dinheiro para ela", conclui Vicentini, apontando que a melhor arma é o ostracismo. "O tempo é curto. Temos que dar atenção para as pessoas que têm propósito."​

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