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Zora Neale Hurston é pioneira em livro no qual ser negra não é problema

'Seus Olhos Viam Deus' mistura ficção e história oral para contar com original habilidade a vida no sul segregado dos EUA

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Stephanie Borges

Poeta, tradutora e jornalista, é autora de “Talvez Precisemos de um Nome para Isso”. Apresenta o podcast Benzina.

Seus Olhos Viam Deus

  • Preço R$ 54,90 (256 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autor Zora Neale Hurston
  • Editora Record
  • Tradução Marcos Santarrita

Quando Janie Crawford fez 16 anos, sua avó a obrigou a se casar com um fazendeiro mais velho, pois temia que a neta ficasse desamparada após sua morte. Contudo, a estabilidade não era o bastante para Janie. Ela foge, se casa outras vezes, trabalha, lida com a solidão, a violência e encontra alguma felicidade no sul rural dos Estados Unidos no início do século 20.

Publicado em 1937, "Seus Olhos Viam Deus" é o romance mais conhecido de Zora Neale Hurston. A escritora fez parte da Renascença do Harlem, movimento artístico que reuniu autores como W.E.B Du Bois e Langston Hughes nas décadas de 1920 e 1930, mas foi esquecida após o sucesso de seus primeiros livros. O prefácio de Mary Helen Washington e posfácio de Henry Louis Gates Jr. contextualizam diferentes recepções críticas do romance e a importância de Hurston para diversas autoras negras.

A antropóloga e dramaturga ficcionista americana Zora Neale Hurston (1891-1960), autora do romance 'Seus Olhos Viam Deus', de 1937 - Reprodução

Antes de a interseccionalidade ser um conceito chave para feministas negras, o romance já articulava como racismo, a desigualdade social e o machismo afetam as comunidades negras. Hurston tratou a violência doméstica e o abuso psicológico como ferramentas usadas por homens negros inseguros para controlar suas mulheres.

"Seus Olhos Viam Deus" se destacou em meio à produção literária da Renascença do Harlem pela forma como a negritude é tratada no romance. Du Bois refletia sobre "o problema do negro" e a importância da educação e de bons empregos para alcançar a igualdade racial.

Nella Larsen escreveu sobre uma mulher negra que abandonou suas origens e se passou por branca em "Identidade", de 1929. Enquanto isso, Hurston escreveu sobre uma mulher negra de pele clara que deseja uma vida simples numa comunidade negra no sul rural. Ser negra não era um problema para Janie Crawford.

A autora personifica o auto-ódio de pessoas negras na figura da senhora Turner, que tenta fazer amizade com Janie por acreditar que as duas partilham algum tipo de superioridade por serem mais claras. A habilidade de Hurston ao tratar de tantos temas delicados, que ainda fazem parte da realidade de pessoas negras, em meio a uma história de amor trágica nos faz compreender por que o romance se tornou uma referência.

Hurston cresceu em Eatonville, no estado americano da Flórida, cidade fundada e governada por negros depois da abolição da escravidão nos Estados Unidos em 1865. A autora estudou antropologia no Barnard College, orientada por Franz Boas nos anos 1920, e seu trabalho de campo era a coleta de contos folclóricos e práticas religiosas das comunidades negras da Flórida e do estado de Louisiana.

Um pouco da produção de Hurston como antropóloga pode ser conhecida em "Olualê Kossola: As Palavras do Último Homem Negro Escravizado", projeto no qual Hurston trabalhou ao longo de 1927 registrando as memórias de um homem africano trazido para os Estados Unidos ainda na adolescência. A edição póstuma, de 2018, foi lançada no Brasil no ano passado.

Eatonville é um dos cenários do romance, que reproduz anedotas e fábulas reunidas por Hurston na pesquisa acadêmica. Em alguns capítulos, a autora põe contos folclóricos na boca de seus personagens, já que a escritora entendia a ficção como forma de popularizar a cultura negra e reconhecer o seu valor estético.

A oralidade é um traço importante da obra. O texto original usa "black English", o inglês vernacular influenciado por idiomas africanos, um cuidado com a linguagem que Toni Morrison e Alice Walker também teriam anos depois.

Na ausência de um equivalente estabelecido em português para o "black English", a tradução usa um registro coloquial, uma solução respeitosa com a decisão da autora. O tom de conversa também é parte da estrutura do livro, já que Janie conta parte de sua história para a amiga Pheoby quando volta a Eatonville.

Depois do breve casamento com Logan Killicks, que só queria uma ajudante em sua fazenda, e de se casar com Jody Starks, um sujeito ambicioso que não sabia aproveitar a vida a dois, Janie se envolveu com Tea Cake, um rapaz mais jovem, pobre e malandro.

A relação dos dois é imperfeita e cheia de altos e baixos, mas a protagonista se torna mais confiante, se diverte, experimenta algumas liberdades e aprende a se defender quando é preciso. A jornada de Janie é difícil, mas ela descobre a importância de ser fiel a si mesma diante das expectativas sociais, das mudanças na vida e das escolhas impostas pelo amor.

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