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Abdulrazak Gurnah, Nobel de literatura, diz que Ucrânia sofre um imperialismo cruel

Referência no pensamento anticolonial, tanzaniano tem em 'Sobrevidas' seu primeiro livro publicado no Brasil

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Pintura de Antônio Obá

Pintura de Antonio Obá Bruno Leão/Mendes Wood DM/Divulgação

São Paulo

"À medida que eu aprendi a ler com compreensão mais ampla, cresceu em mim o desejo de escrever em recusa às simplificações cheias de certezas das pessoas que nos desprezavam e diminuíam", discursou o tanzaniano Abdulrazak Gurnah ao aceitar o prêmio Nobel de literatura em dezembro do ano passado.

A maneira como o autor descreve sua decisão de se opor à perspectiva dominante sobre a África pode muito bem ser a definição dicionarizada de narrativa decolonial.

"Algo perturbador ficou claro para mim, que uma nova história estava sendo construída, transformando e obliterando o que havia acontecido. Essa história era o trabalho inevitável dos vitoriosos, mas também era adequada a analistas e acadêmicos que não tinham interesse real em nós e se tornou necessário rejeitar essa história."

Foi a partir disso que se construiu o projeto literário deste escritor de 73 anos, que se mudou para o Reino Unido como refugiado em 1968 por perseguição aos árabes em sua terra natal —um artista tão singular a ponto de conquistar a distinção mais alta da literatura mundial, a quarta pessoa negra premiada na história.

Escrever contra quem nos despreza nem sempre significa se manifestar com estridência, como prova a literatura sutil e matizada de Gurnah. Como reitera o autor de "Sobrevidas" —seu romance mais recente e seu abre-alas nas livrarias brasileiras—, contar histórias com nuances é fundamental para que os estereótipos criados pelos colonizadores não sejam combatidos com outras simplificações.

"Você não responde a uma história falsa com outra história falsa", afirma Gurnah, um homem grisalho de voz suave e pesadas bolsas sob os olhos, em entrevista a este jornal. "Se a história oficial é um exagero, você não responde com outra distorção. Talvez o seu resultado seja menos retumbante, soe menos como uma declaração de palanque, mas se você aponta as imprecisões naquela história, mostra que há outra maneira de olhar."

"Eu vejo isso como ativismo, não como quietude", continua. "Escrever da maneira mais verdadeira sobre a condição dos colonizados não exige declarações em volume alto, anúncios polêmicos. Talvez, se você fizer isso, sua voz seja ouvida melhor em meio à multidão, mas não me parece a coisa mais valiosa que um escritor pode fazer."

Dessa forma, "Sobrevidas" mistura narrativas mais familiares —Hamza, o adolescente da África Oriental que se vê vitimado pela insanidade de uma guerra europeia que tem palco na sua terra— e outras mais inesperadas —Ilyas, o jovem que se voluntaria nessa mesma guerra para lutar ao lado dos alemães que colonizam seu povo.

Numa cena, Ilyas sai em defesa dos colonizadores afirmando que estavam "combatendo um inimigo que foi tão selvagem quanto eles". "Eles tiveram de revidar com severidade porque é só assim que os selvagens conseguem entender ordem e obediência. Os alemães são um povo honrado e civilizado e fizeram muita coisa boa desde que chegaram aqui", diz o jovem africano.

"Ilyas representa muitas pessoas que abraçaram as autoridades coloniais", comenta seu autor. "E você pensa 'por que alguém faria isso, lutar contra outros africanos?'. A resposta está, entre outras coisas, no prestígio econômico e de poder que isso conferia. Você quer se aliar aos vencedores."

O romance, ambicioso sem perder o pé no chão, constrói aos poucos um painel de personagens que cobre diferentes gerações, da colonização alemã no final do século 19 à dominação da região pelos britânicos, passando pelos reflexos de duas guerras mundiais até chegar aos ventos da independência.

É curioso que o livro saia no Brasil justamente quando outra invasão de ares expansionistas abala a Europa. A violência imperialista nunca cessou de operar no mundo, afirma Gurnah, mas o avanço da Rússia sobre a Ucrânia tem particularidades que ele chama de cruéis.

"No caso dos britânicos, dos franceses, dos portugueses, eles atravessaram os mares para dominar pessoas completamente diferentes deles, com um alto grau de ferocidade e desumanidade", afirma. "Na Rússia, há a diferença da vizinhança. O que é especialmente cruel é que há uma longa história de amizade, de compartilhamento de cultura e até de famílias entre eles, o que torna tudo mais desagradável e injusto."

A carreira de Gurnah como escritor —a que os brasileiros terão acesso ampliado a partir do ano que vem, quando a Companhia das Letras traz "Paraíso", "À Beira-Mar" e "Desertion", este último ainda sem tradução para o português— é marcada também por reflexões sobre a sensação de deslocamento nos imigrantes.

Foi algo que o tanzaniano sentiu na pele. Ainda que evite escrever sobre experiências flagrantemente autobiográficas, ele afirma que passar a vida adulta no Reino Unido permitiu que elaborasse melhor o que significava viver sob o jugo colonial —talvez melhor do que se tivesse ficado em Zanzibar, onde nasceu.

Essas memórias se mobilizam, diz ele, quando você "já tem uma certa idade e sente que já teve uma vida completa". "E mesmo assim não consegue digerir a sensação de que está fora do lugar. A sensação de que você perdeu algo que continua dentro de você."

Num ponto alto do romance, o jovem Hamza, traumatizado por brutalidades da guerra, faz uma confissão que ecoa os sentimentos de Gurnah.

"Você quer que eu te conte a minha vida como se eu tivesse uma história completa, mas eu tenho fragmentos entrecortados por uns buracos complicados, coisas que eu teria perguntado se pudesse, momentos que acabaram cedo demais ou foram inconclusivos."

"As pessoas que fazem parte de uma comunidade têm maneiras de tornar o insuportável mais suportável umas para as outras", diz o escritor a este repórter. "Quando você está longe, vê as coisas com menos rodeios. Não é que a distância permite que você veja mais claramente. Mas você aprende novamente a ver."

Sobrevidas

  • Quando Lançamento nesta quinta (31)
  • Preço R$ 74,90 (336 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Abdulrazak Gurnah
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Caetano W. Galindo
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