Descrição de chapéu Folhajus

Ação ilegal do Iphan levou à destruição de palacete que inspirou Machado de Assis

Arquitetos denunciam intervenção de estacionamento no Rio, que aproveitou decisão da presidente do órgão, agora vetada

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Rio de Janeiro

O destombamento do solar Visconde de São Lourenço, na Lapa, região central do Rio de Janeiro, foi sugerido pelo próprio Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em dois documentos, expedidos entre outubro do ano passado e janeiro deste ano.

No dia 13 de fevereiro, duas semanas após a decisão assinada pela presidente da autarquia, Larissa Peixoto, os proprietários de um estacionamento que funciona no local desde 2001 iniciaram a demolição da fachada do século 18, destruindo telhas, cantarias e soleiras. Desde outubro passado, outros dois bens foram destombados pelo instituto.

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A fachada do solar Visconde de São Lourenço, na Lapa, que foi demolida - Marconi Andrade/Reprodução

Dois dias depois, a juíza Mariana Tomaz da Cunha, da 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro, suspendeu a determinação do Iphan. Em seu entendimento, a decisão da presidente da autarquia fora irregular. Segundo a juíza, só o presidente da República tem a prerrogativa de cancelar o tombamento de um bem, atendendo a motivos de interesse público.

No despacho, a prefeitura foi intimada a garantir as medidas necessárias para interditar o imóvel, mas até agora não realizou nenhuma ação de escoramento ou contenção das fachadas.

Desde então, as obras cessaram, e a fachada, o que resta do palacete considerado símbolo da arquitetura neoclássica, está isolada por uma faixa da Defesa Civil devido ao alto risco de desabamento.

Mariana Santos, funcionária da Seg Park Estacionamento, negou a demolição, mas confirmou que os proprietários da empresa, Maria Lídia da Silva Amoreira e Márcio Henriques Domingos Fortes, intervieram nas fachadas no período em que o tombamento foi cancelado. Amoreira e Fortes não responderam aos pedidos de entrevista.

O destombamento do solar foi sugerido por dois documentos assinados pelo historiador Adler Homero Fonseca de Castro, do Iphan. Num ofício de outubro do ano passado, ele anunciou que o processo trataria de um assunto "vexatório" para o órgão, que teria falhado na missão de resguardar o patrimônio. Mesmo com duas fachadas restantes, Castro considerou que o solar havia perdido "qualquer valor que podia lhe ser associado".

Já em um parecer do mês passado, o arquiteto foi além e alegou ausência de materialidade e perecimento da estrutura. Em outras palavras, Castro afirmou que um bem existente não existe. Não é a primeira vez que o arquiteto se envolve em decisões polêmicas. Uma reportagem publicada neste jornal em junho do ano passado revelou a participação de Castro no grupo de estudos do Iphan que desejava proteger armas de fogo como objetos de valor cultural.

Justiça anulou 'destombamento' do palacete São Lourenço após ato ilegal do Iphan - Reprodução/Street View Google

Por intermédio de uma nota da assessoria do Iphan, Castro alegou que não houve destombamento, mas apenas o cancelamento da inscrição do bem no livro do tombo. A nota diz que "o tombamento original não se refere a duas fachadas, mas sim a um solar".

A reportagem esteve na esquina entre as ruas do Riachuelo e dos Inválidos, onde fica o solar. Atrás das fachadas onde ficavam as ruínas do palacete, o estacionamento ocupa um descampado.

"Como ninguém faz nada, a gente tem um projeto de arquitetura para reforçar a fachada e tirar a mata que cresceu nas pedras. Os vizinhos reclamam que a mata causa uma infestação de insetos e que eles invadem os apartamentos", afirma Santos. A funcionária ressalta que os proprietários negociam com o Iphan a retomada das obras, mesmo com o imóvel tombado.

No domingo e na segunda, o restaurador Marconi Andrade passou pelo solar e comprovou o processo de demolição da fachada, publicando fotos e vídeos na página que administra no Facebook, a S.O.S Patrimônio.

"Eles não estavam fazendo contenção nenhuma. Usaram britadeiras, e a situação da fachada piorou, está colapsando, tem risco de cair e causar um acidente grave", ele conta. "Antes da demolição, ninguém do nosso grupo sabia que o prédio tinha sido destombado."

Também no domingo, o aposentado Mário Leão, morador da Gomes Freire, rua próxima ao solar, não identificou nenhuma placa indicando obras no local e percebeu que os trabalhadores não usavam uniforme de nenhuma empresa. "Eu estranhei o fato de a obra ter começado num domingo. Eles estavam usando andaimes e picaretas para quebrar pedras e telhas."

A Seg Park tem um alvará de funcionamento concedido em 2020 pela prefeitura. O negócio, porém, tem dificuldades para permanecer aberto. Em março de 2012, uma vistoria realizada pela subsecretaria de Saúde e Defesa Civil constatou que a exploração comercial da área era irregular.

O boletim de ocorrência dizia que o estacionamento gerava "risco ao trânsito e permanência de veículos em seu interior, em face do risco de queda de fragmentos das fachadas remanescentes". Cinco meses depois, a própria Seg Park solicitou uma vistoria do Iphan, que recomendou a retirada do estacionamento, alertando, já naquela época, para o risco de queda da fachada. Em dezembro do mesmo ano, a renovação do alvará foi indeferida.

Menos de dois anos depois, a empresa já explorava novamente o local. Em 2014, Amoreira e Fortes, os donos do estacionamento, tentaram intervir nas fachadas, instalando andaimes na estrutura. Uma vistoria do Iphan de 28 de julho daquele ano proibiu a realização de obras sem a aprovação do órgão.

Tombado pelo Iphan desde 1938 —e preservado há 30 anos—, o solar serviu de inspiração para o escritor Machado de Assis. Ali ficava a rua de Matacavalos —hoje Riachuelo—, onde Bentinho, personagem do romance "Dom Casmurro", de 1899, morava num sobrado. O primeiro proprietário foi Antônio da Cunha, oficial das ordenanças que, em 1820, vendeu o imóvel a Francisco Targine, o visconde de São Lourenço, conselheiro de dom João 6º.

Por três vezes —em 1940, 1941 e 1994—, os herdeiros tentaram cancelar o tombamento do solar, alegando falta de condições financeiras para a manutenção da propriedade. Atualmente, os herdeiros não são localizados nem mesmo pela Justiça. Há 30 anos, um incêndio, tido como criminoso, destruiu boa parte do solar.

Seis anos depois, o Iphan contratou a empresa Monsanto Construções para recuperar o imóvel. Pressionada por invasores, a construtora afirmou que seria preciso vigilância policial 24 horas para a realização dos trabalhos e, por isso, as obras não tiveram continuidade.

Em duas outras ocasiões, o prédio teve a oportunidade de se reerguer. A primeira ocorreu em 2002, no contexto do programa Novas Alternativas, realizado pela secretaria municipal de Habitação. O Iphan afirmou que a reconstrução seria a melhor opção.

Já em 2013, o arquiteto Glauco Campello, que trabalhou com Oscar Niemeyer na construção de Brasília, tentou dar fim à agonia do solar, apresentando um novo projeto ao Iphan. Para substituir o estacionamento, Campello projetou um espaço com jardins e cafeterias. Além disso, o arquiteto vislumbrou erguer um pequeno prédio de escritórios em harmonia com a fachada. Segundo o Iphan, a obra descaracterizaria o local.

"Acho que foi uma avaliação ignorante. Naquele projeto, eu queria unir o passado ao futuro do Rio. Aquele prédio é o símbolo de uma época da cidade", diz Campello. "Saber da tentativa de destombamento do solar hoje é um desrespeito à tradição do Iphan."

Erramos: o texto foi alterado

Adler Homero Fonseca de Castro é historiador, e não arquiteto. O texto foi atualizado.

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