Adriana Varejão escancara as ruínas do Brasil na maior retrospectiva de sua carreira

Trabalhos que estavam em sete países diferentes chegam à Pinacoteca de São Paulo em exposição com peças inéditas

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Artista branca de cabelos longos veste preto e está em frente à obra amarela

A artista Adriana Varejão em mostra na Pinacoteca de São Paulo Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

Está na Pinacoteca de São Paulo meia tonelada de anjos que Adriana Varejão não via desde 1989. É a brincadeira que sua equipe faz com o que está dentro da imensa caixa de 500 quilos que veio do museu Stedelijk, em Amsterdã, que protege uma pintura barroca da artista mostrada só uma vez no Brasil.

E foi por pouco que "Anjos" não voltou para cá. O museu holandês, que é público, hesitou em mandar a obra com um funcionário no meio da pandemia. Varejão chegou a fazer uma campanha em suas redes sociais e enviar uma carta ao museu explicando a importância da pintura para essa mostra que é a maior retrospectiva já feita em sua carreira.

O quadro veio e se soma ao esforço de trazer a própria artista de volta para o país que ela retrata com suas carnes expostas, fissuras e superfícies craqueladas. As mais de 60 obras da exposição, que começa neste sábado, chegaram de sete países diferentes —e com concierges de cada um deles— para montar esse panorama das principais séries feitas pela artista nas últimas quatro décadas.

"A obra tem que estar interagindo com o público para fazer parte da história. É muito importante que os museus tenham essa consciência, de que a obra é um capital cultural", diz Varejão. "Sendo mostrada para o público é como a obra sobrevive."

A exposição organizada por Jochen Volz, que já trabalhou com Varejão na construção do pavilhão da artista no Instituto Inhotim, traça um arco que vai desde os trabalhos barrocos do final dos anos 1980, quando ela ainda estudava na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, até trabalhos inéditos da série que ela considera pinturas tridimensionais, as suas ruínas de charque.

Seis obras, duas feitas especialmente para a mostra, vão ocupar a parte central do museu, o octógono. Está ali a "Ruína Brasilis", uma coluna com a carne exposta e revestida de azulejos verdes e amarelos que foi apresentada em Nova York no ano passado e agora foi doada ao acervo da Pinacoteca. Está aí, aliás, um outro esforço de Varejão para ficar no Brasil —ela acaba de doar uma obra também para o acervo do Masp.

"A talavera", uma cerâmica mexicana que ela conheceu no próprio país, "usa a composição verde e amarela", conta ela. "Mas foi emocionante porque há pessoas que sentem o resgate dessas cores que foram sequestradas por um outro discurso", afirma ela em relação ao governo de Jair Bolsonaro.

E nesse cenário agitado pelo bicentenário da independência do Brasil, não é só a violência da gestão atual que atravessa a obra de Varejão. Os azulejos coloniais craquelados de uma Europa decadente, as fissuras abertas nas cenas de escravidão e a miscigenação do país em tantos tons de tintas escancaram as heranças da nossa formação. E tudo volta ao barroco brasileiro, que a arrebatou ainda jovem durante uma visita a Ouro Preto, em Minas Gerais —outro lugar a ter o patrimônio ameaçado.

"No período dos anos 1980, ela realmente mergulhou na pintura e apresenta nas pinturas algumas buscas ou ideias que percorrem toda a trajetória dela", afirma Volz, o organizador da exposição. "Uma delas, por exemplo, é a ideia da ilusão, um motivo vindo do barroco. É a ideia de que uma coisa pode ser uma pequena janela que se abre para dentro. Há a ilusão da tridimensionalidade, a ilusão de ser um outro material, que aparece nas ruínas."

É como se nas camadas espessas que ela cria naquelas pinturas do começo da trajetória —e que se multiplicam nos trabalhos com ainda mais materialidade que vieram depois— Varejão escondesse e revelasse ao mesmo tempo através de cortes, de frestas.

"Adriana Varejão: Suturas, Fissuras, Ruínas" abre o calendário da Pinacoteca que debate a arte decolonial. Segundo Volz, as obras dela dialogam justamente com essa pauta agitada pelo bicentenário na Independência de um mito de uma certa diversidade na formação do Brasil.

"Ela tem essa ideia do que é a arte brasileira e esse olhar cuidadoso para uma história visual que é dominada por um olhar, influência e academicismo europeus, e a partir disso faz a estratégia da paródia", diz ele. "Está ali inclusive a ideia de antropofagia, da carne, dessa fascinação da ideia de quebrar inclusive alguns tabus. Tudo aparece na obra dela."

Varejão conta que, nos últimos tempos, fez uma incursão por textos de Mário de Andrade e nas ideias que ele defendeu de construir uma brasilidade que fosse "inclusiva em termos culturais". "Cem anos depois da Semana de 22, a gente vê que o projeto dele não se deu justamente por essa inviabilidade do próprio Brasil, das questões políticas do país. Acho que sou uma artista que tenta pensar também nesse projeto."

Parece fazer parte desse esforço o diálogo com uma geração mais nova de artistas, que voltou com força à pintura. Segundo Varejão e Volz, aliás, é esse exercício da pintura, o "denominador comum" da obra da artista, que costura toda a organização da mostra.

"Pintar nos anos 1990 perdeu completamente a força, era o patinho feio. Todo mundo fazia instalação, escultura", lembra ela. "E agora eu vejo toda uma geração extremamente política e muito vigorosa em relação à pintura figurativa."

Lembrando novos nomes como Maxwell Alexandre, Wallace Pato, entre outros, Varejão também vê as artes visuais saírem das mãos dos artistas da elite exclusivamente e formarem uma cena mais interessante.

Volz também vê essa carga política no trabalho da própria Varejão, que trabalha temas que são caros a essa nova geração de pintores. "Nessa pesquisa social, ou sobre a história visual desde o final dos anos 1980 até hoje, Adriana tem desenvolvido uma forma própria de apontar que há feridas na história brasileira. Ela faz isso com muito cuidado, mas muito afinada."

Ou como a própria Varejão definiu ao curador numa entrevista que integra o catálogo da exposição, "minha ferida serve para profanar a história contada pelos vencedores".

Adriana Varejão: Suturas, Fissuras, Ruínas

  • Quando 26 de março a 1º de agosto. Qua. a seg.: 10h às 18h
  • Onde Edifício Pinacoteca Luz - praça da Luz, 2, Bom Retiro, SP
  • Preço R$ 20, ingressos em pinacoteca.org.br. Gratuito aos sábados
  • Curadoria Jochen Volz
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