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'Anjo de Pedra' traz Tennessee Williams sem o seu vigor na pandemia

Montagem traz a Covid-19 de maneira simplista e não supera entraves prolixos do texto original do dramaturgo americano

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Anjo de Pedra

  • Quando Sex. e sáb.: às 21h; dom.: às 18h. Até 15 de maio
  • Onde No Tucarena - r. Monte Alegre, 1.024, São Paulo
  • Preço De R$ 40 a R$ 80
  • Classificação 12 anos
  • Autor Tennessee Williams
  • Direção Nelson Baskerville

Nas "Memórias" de Tennessee Williams, publicadas em 1975, ele diz que Alma Winemiller, protagonista de sua peça "Summer and Smoke" —traduzida no Brasil como "Anjo de Pedra"— talvez seja a melhor personagem feminina que ele criou para o teatro.

A afirmação superlativa provavelmente tem a ver com o fato de Alma ser uma personagem que encarna, em seu interior dilacerado, todo o embate titânico que fundamenta aquela peça.

Filha de um pastor anglicano, criada sob estrita educação religiosa, Alma se vê tomada de paixão por John Buchanan Junior, um jovem médico, cético, que despreza o misticismo religioso e que, apesar do que sente por Alma, está inebriado pelos prazeres materialistas da carne —jogos, bebidas, festas, sexo.

Elenco da peça 'Anjo de Pedra', dirigida por Nelson Baskerville com base em texto do Tennessee Williams
Elenco da peça 'Anjo de Pedra', dirigida por Nelson Baskerville com base em texto do Tennessee Williams - Ronaldo Gutierrez/Divulgação

Segundo Tennessee Williams, que escolheu como pseudônimo o nome de um estado no sul dos Estados Unidos —seu nome de batismo é Thomas Lanier Williams 3º—, esse tipo de conflito não é uma abstração filosófica, ou uma especificidade daquelas personagens, mas algo intensamente ligado ao país.

Em sua obra, Williams vai fundo na investigação subjetiva de suas personagens, mas faz isso para delas
extrair um tipo de substância dos Estados Unidos. A conjugação da moral religiosa protestante com o pragmatismo desumanizador da sociedade capitalista, cada qual carregando seus próprios mecanismos repressores, cria estrago social e ambientes asfixiantes e violentos que o autor soube bem mostrar, sobretudo na forma como incidem sobre a mulher.

Entretanto, no espetáculo dirigido por Nelson Baskerville, a conexão da peça com os Estados Unidos da primeira metade do século 20 —e, portanto, a forte diferença de latitude com relação ao Brasil— não parece ser um problema a ser enfrentado. São tímidas as tentativas de propor novos horizontes reflexivos, a partir da peça, que poderiam atualizar e reativar o interesse por ela.

Num desses breves rearranjos, quando John Buchanan decide seguir os passos do pai e atuar no combate à pandemia de gripe espanhola, um vídeo reproduzido em cena mostra imagens da pandemia atual e do negacionismo de fundamento religioso que se contrapôs ao isolamento, vacinação, máscaras.

Mas essa tentativa mais autoral da montagem, que poderia dar novo vigor para a peça de Williams, se desenvolve de forma simplista. A julgar pela analogia, John Buchanan, médico que atuou no combate científico a uma pandemia, faria parte, naquela altura da trama, de um tipo de consciência esclarecida.

Seria, assim, um contraponto à moral religiosa que asfixia a pulsão de vida de Alma. Mas Tennessee Williams sempre desconfiou dos dois lados dessa equação. Se a moral religiosa é terrível e castradora, também o pragmatismo científico é arrogante, desumanizador e violento.

Alma termina viciada em algum tipo de ansiolítico prescrito por John —ela chega a decorar o número da receita médica e diz a certa altura "penso nesses algarismos como se fossem o número de telefone de Deus". Com cirúrgico sarcasmo, o autor ironiza a crença de que a ciência é, em si, a superação do obscurantismo religioso.

Na justa tentativa de conectar a obra à atualidade, o espetáculo acaba por criar um dualismo e, assim, neutralizar parte da viva representação dialética que Williams fez da sociedade moderna.

Ao mesmo tempo, entretanto, a montagem se apega demais ao andamento excessivamente prolixo do texto original, insiste nos longos debates entre Alma e John, que giram em falso e são repletos de uma sentimentalidade quase patética.

A versão atual de "Anjo de Pedra" parece reproduzir esses entraves da obra —que, ao que tudo indica, são um dos porquês do texto nunca ter empolgado demais em suas incursões pela cena e telas desde a década de 1940— e, ainda assim, se afastar de suas melhores qualidades reflexivas.

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