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Guerra na Ucrânia Rússia

Cancelar russos devido à guerra na Ucrânia também é uma barbárie

Boicotes a artistas da Rússia são cópia infeliz dos ostracismos que regimes autoritários aplicam às vozes dissonantes

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João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Guerra na Ucrânia e eu sem acesso ao Russia Today. O canal de TV foi suspenso na União Europeia, juntamente com a agência noticiosa Sputnik, privando assim qualquer pessoa de assistir à propaganda do Kremlin. Que ganha a Europa com isso?

Não sei. Mas sei o que perde –a possibilidade de acompanhar a narrativa oficial russa para melhor a perceber e combater. Anos atrás, o pai de um amigo polonês, que era ferozmente anticomunista, dizia que aprendera a língua de Tolstói ainda criança.

Quando perguntei por que, a resposta foi exemplar –devemos conhecer a língua dos nossos inimigos.

Retrato do escritor russo Liev Tolstói, que viveu entre 1828 e 1910 - Reprodução

Mas será que os russos são nossos inimigos? Ou, distinção importante, o inimigo é Vladimir Putin e sua quadrilha, que espera submeter a Ucrânia à pata imperial moscovita, na boa tradição czarista e soviética (e, já agora, polonesa também)?

Não tenho dúvidas. A russofobia que corre por aí é também uma expressão de barbárie.

Na Itália, leio que Dostoiévski tem sido "cancelado" por universidades e teatros. Na Inglaterra, há companhias de bailado russas que foram "desconvidadas" de atuar. Na Alemanha, o maestro Valeri Gergiev foi afastado da Filarmônica de Munique por não se distanciar publicamente de Putin –não procedeu a uma "autocrítica", para evocar esse conceito sinistro da União Soviética.

E assim sucessivamente, até chegarmos a atletas impedidos de competir ou escritores boicotados em feiras ou festivais. Será que Dostoiévski não tinha razão quando afirmava que a beleza salvará o mundo?

Entendo que Putin, o seu regime e os seus oligarcas sejam direta e severamente sancionados.

E confesso hesitação perante aqueles que defendem boicotes a organizações culturais ou esportivas russas que são um mero prolongamento da autocracia de Putin, conferindo ao seu regime um verniz de normalidade. Hesito, sem subscrever.

Mas "cancelar" Dostoiévski? A proposta é de uma ignorância atroz. Se existe autor que deve ser lido, e bem lido, na tragédia corrente, esse autor é Dostoiévski. Nenhum outro escritor do século 19 expressou tão bem a tensão permanente entre a opção ocidental e a rendição ao nativismo e à religiosidade ortodoxa.

Essa tensão ressurge com Putin e suas patrulhas ideológicas, só que resolvida agora da forma mais brutal –pela denúncia do Ocidente e pela defesa messiânica da Grande Rússia, o que implica a absorção da Ucrânia por todos os meios necessários.

Mas os "cancelamentos" não são apenas ignorantes; são uma cópia infeliz dos ostracismos que os regimes autoritários aplicam às vozes dissonantes.

Há cem anos, Lênin fez questão de encher dois navios com a nata da intelligentsia russa, condenando mais de 150 intelectuais a um exílio perpétuo. Mikhail Bulgákov foi um deles.

A partir de 1933, Hitler repetiu o gesto, perseguindo e expulsando da nova Alemanha os autores modernistas que tinham feito a grandeza artística da República de Weimar.

A punição coletiva sobre todos aqueles que possuem um passaporte da Federação Russa, ou até que simpatizam com as ideias de Vladimir Putin, é uma negação essencial da liberdade e do pluralismo que definem as democracias do Ocidente, onde o indivíduo é mais importante do que qualquer identidade tribal.

Por outro lado, se a esperança última das democracias ocidentais é que os russos se rebelem contra o seu tirano, como obter esse milagre pelo estigma lançado sobre um povo inteiro?

Como lembrava Ben Judah no Daily Telegraph, a retórica da Guerra Fria contra "os russos", assim designados indistintamente, atrapalhou mais do que ajudou.

O caminho deve ser outro –encorajar a deserção, proteger os dissidentes, permitir que os russos comuns viajem para Ocidente e tomem contato com sociedades mais livres e mais prósperas. Haverá forma mais eficaz de implodir o castelo de mentiras e abusos que Putin ergueu impunemente?

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