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David Foster Wallace louva o tédio na era dos excessos no póstumo 'O Rei Pálido'

Ambientando na receita federal, livro guia leitores para desvendar a beleza até nas entranhas do fastio contábil

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São Paulo

É difícil imaginar que a tradução de um romance inacabado que se passa na receita federal dos Estados Unidos pudesse comover leitores a tal ponto que, segundo Otavio Marques da Costa, publisher da Companhia das Letras, o público usasse e abusasse das caixas de comentários das redes sociais da editora para cobrar a publicação.

Mas nem as 608 páginas recheadas de vocabulário técnico contábil –cortesia da obsessão com excelência do autor, que chegou a fazer aulas de contabilidade enquanto escrevia– e as famosas e caleidoscópicas notas de rodapé parecem impedir a legião de aficionados pela obra de David Foster Wallace (1962-2008) de estabelecer conexões sentimentais profundas com "O Rei Pálido".

O escritor David Foster Wallace, de 'O Rei Pálido'
O escritor David Foster Wallace, de 'O Rei Pálido' - Hachette Book Group/Bloomberg

O romance chega nesta quinta-feira (24) às livrarias, em tradução de Caetano Galindo, responsável por decifrar os monumentais "Graça Infinita", aclamado segundo romance de Foster Wallace, e "Ulysses", de James Joyce.

"O Rei Pálido" foi publicado postumamente em 2011, três anos após o suicídio do autor. Foster Wallace havia deixado o manuscrito em sua escrivaninha, na opinião de alguns estudiosos, pronto para ser encontrado.

A versão que chega aos leitores passou, porém, pelo crivo do editor Michael Pietsch, que fez um trabalho de quebra-cabeças para ordenar capítulos –a viúva e a agente de Wallace encontraram mais centenas de páginas soltas e HDs repletos de arquivos que montariam o romance além do manuscrito.

O escritor e tradutor curitibano Caetano Galindo, responsável por traduções da obra James Joyce
O escritor e tradutor curitibano Caetano Galindo, responsável por traduções da obra James Joyce ede 'O Rei Pálido' - Theo Marques/Folhapress

Todo o contexto de publicação da obra cria um certo folclore em torno do livro e, consequentemente, um frisson pelo tão aguardado lançamento em português. O Brasil é, segundo Marques da Costa, um mercado que recebeu bem outros trabalhos de Foster Wallace –só pela Companhia foram publicados "Breves Entrevistas com Homens Hediondos", de contos, "Ficando Longe do Fato de Eu Já Estar Meio que Longe de Tudo", coletânea de ensaios e reportagens, e o epopeico "Graça Infinita".

"O livro [Graça Infinita] nos surpreendeu na ocasião [do lançamento]. É um romance longo e, por isso, caro", diz. "Aqui no Brasil é um best-seller, foi uma certa coqueluche."

Diferentemente do antecessor, "O Rei Pálido" não aposta nos recursos carnavalescos de situações absurdas que elevam a obra ao status de quase distopia –embora, lido em 2022, presidentes saídos de reality shows e prefeitos lutadores de boxe empurrem o livro perigosamente para as reportagens saídas de "Ficando Longe".

O romance inacabado se passa em um escritório da receita federal, cenário que Wallace entendia como o ápice do tédio e, portanto, separado por uma muralha do entretenimento. Para alguns críticos que o avaliaram à época do lançamento, "O Rei Pálido" transparecia o tédio da ambientação em sua prosa, e tornava a leitura tão enfadonha quanto a vida das personagens.

Esse traço, apontam os especialistas, estava longe de ser uma coincidência infeliz da obra de Wallace –e é uma herança do próprio "Graça Infinita".

"'Graça Infinita' é um livro com um problema técnico para resolver: ele é inteiramente sobre o quanto entretenimento é viciante e pode ser nefasto e, no entanto, você precisa manter uma pessoa lendo por mil páginas", diz Galindo. "Ele gira no eixo de um paradoxo, está criticando entretenimento e precisa te manter entretido, tem que ser divertido."

Com "O Rei Pálido", a fórmula se repete, mas para o lado oposto —Foster Wallace tenta manter o leitor dentro de um livro que, na terceira página, já o entope com uma reflexão sobre equações contábeis.

"Em 'Graça Infinita' o tema é como lidar com o tédio da vida adulta pelo viés do escape: entretenimento, vícios em comida, drogas, em televisão", explica Ana Carolina Werner, mestra em literatura pela UFPR. "Em 'O Rei Pálido' não tem escape. Você afunda no tédio."

Para Galindo, "O Rei Pálido" é o momento em que Foster Wallace truca a própria fórmula que o catapultou ao patamar de gênio literário da sua geração –cúspide de baby boomer com geração X. "Ele não quer usar exuberância para falar do tédio."

O escritor David Foster Wallace, morto em 2008
O escritor David Foster Wallace, morto em 2008 - The LIFE Images Collection/Getty

Apesar de ser tentador para o leitor desavisado descrever "O Rei Pálido" como um romance ainda mais chato do que declarar o próprio imposto de renda, Galindo ressalta que o livro não é apenas sobre o tédio, mas "sobre como nossa sociedade está equivocada em pensar que o tédio é seu grande problema".

"As coisas de que ele fala, no fundo, são muito atemporais, não geográficas, não contextuais. No fundo, desejo, falta, tédio, tempo, carência são as mesmas coisas que incomodavam pessoas na Índia 2.500 anos atrás."

Foster Wallace, segundo ele mesmo, não tinha televisão em casa e era um grande crítico do entretenimento consumível, que ele entendia como alienante. Isso, unido ao apreço por uma forma que joga o tempo inteiro com a ideia de trazer o processo literário para o romance, inclusive contando com a –necessária– colaboração do leitor, situam Foster Wallace no lugar de voz da virada do milênio.

"Autor aqui. Ou seja, o autor de verdade, o ser humano vivo que segura o lápis, não alguma persona narrativa abstrata", escreve David Foster Wallace no nono capítulo de "O Rei Pálido". "Tudo aqui é verdade. Este livro é real de verdade."

O que o destaca –e adiciona fãs ao clube até hoje– é seu peito aberto: "por trás de todos os fogos de artifício tem sempre uma base muito clara em honestidade", afirma Galindo.

"Ele traduziu em ficção e em não-ficção o sentimento de como vivia uma geração", diz Werner, "as pessoas cultuam o Wallace como autor porque se reconhecem naquilo que ele escreve". E esse sentimento é, além dos grandiosos –tédio, vício e capitalismo– a simples e massacrante angústia de ser adulto, compartilhada por leitores, que se viram desnorteados com a morte do autor.

"São livros difíceis de ler, mas tem 300 mil fóruns na internet falando deles, da escrita do Foster Wallace", diz Werner. "O projeto dele deu certo. Se na visão dele para ser um adulto funcional você tem que estar em contato com os outros, ele conseguiu, porque os leitores dele se juntam."

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