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'As Maravilhas', que retrata o Dia da Mulher, pensa como o dinheiro aprisiona todas elas

Nova promessa da literatura, a espanhola Elena Medel mostra como a miséria determina diferentes gerações em romance

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ilustração em rosa e roxo de três cabeças de mulheres, umas sobre as outras

Ilustração de Julia GR para a capa do livro 'As Maravilhas', de Elena Medel Julia GR/Divulgação

São Paulo

É moeda corrente a frase de Virginia Woolf que defende a existência de um espaço próprio para que mulheres escrevam ficção, no clássico "Um Teto Todo Seu". Mas pouco se lembra que a citação completa da autora é "uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu".

A pura necessidade de dinheiro para alcançar a independência artística ainda é negligenciada quando se fala de cultura, diz a espanhola Elena Medel, escritora em ascensão de 36 anos. Então, ela decidiu escrever um romance sobre isso.

Não que "As Maravilhas", obra lançada há um ano e meio que já a projetou para mais de uma dezena de traduções ao redor do mundo, tenha qualquer pretensão de teoria econômica. Mas as duas mulheres que dividem seu centro sabem perfeitamente que a miséria define seus passos.

"Cada uma das situações que trouxeram María até aqui teria se desenvolvido de forma muito diferente com dinheiro", escreve o romance sobre a mais velha das duas mulheres, que conhecemos no romance beirando os 70 anos de idade.

Foi por causa da penúria que ela precisou largar a escola, que acabou cedendo à insistência sedutora de um estranho no ônibus, que teve de aceitar um emprego em outra cidade, Madri, e deixar sua filha para sempre.

Do outro lado da moeda, a jovem Alicia despenca ladeira social abaixo, indo de uma menina que feria as colegas de inveja com sua fortuna —suas maravilhas, que dão título ao livro num trocadilho com Lewis Carroll— a alguém que, como descreve a primeira frase do romance, "vasculha os bolsos e não encontra nada".

São tramas que se desenrolam em registros distintos —se a história de María é a da sua progressiva politização, a de Alicia é de um total embotamento em relação ao mundo— e se tocam de maneira surpreendente na manifestação feminista de 8 de março de 2018.

​Medel sublinha seu interesse nas narrativas que viajam do íntimo ao político, observando a transformação do privado no público, à moda da francesa Annie Ernaux.

"A história com letra maiúscula está sempre contada nas enciclopédias através de nomes masculinos, que decidem sobre a vida de todos", afirma ela. "Eu queria contar a história do meu país guiada por duas mulheres cujas circunstâncias foram definidas por outras pessoas."

elena medel em preto e branco
A escritora espanhola Elena Medel, autora de 'As Maravilhas' - Divulgação

Como diz um trecho do romance, María "pronunciava com familiaridade os nomes e sobrenomes daqueles que faziam parte da sua biografia", os políticos de terno que ocuparam os principais cargos da Espanha, que tinham em comum o fato de que "nunca saberiam nada sobre ela".

As duas narrativas têm verve própria, mas também servem para ilustrar momentos-chave da história espanhola. Enquanto trabalha fazendo faxina ou cuidando de idosos, María ouve a repercussão da morte do ditador Francisco Franco e da eleição do presidente socialista Felipe González. Aos poucos se envolve com coletivos de mulheres criados nas periferias que foram cruciais na década de 1970.

Já a trajetória de Alicia ecoa as migrações que redesenharam o país após a crise mundial de 2008, e seus empregos são os "bullshit jobs" que marcam a economia atual.

"Já ouvi comentários na linha ‘me interessou muito a parte histórica, mas quando o livro se mete na intimidade da mulher, perdi o interesse’", lembra Medel. "Mas essa intimidade está atravessada por questões históricas. Temas femininos são entendidos como particulares, deixariam de fora os leitores homens, mas meu romance trata da precariedade, que me parece afetar por igual a todos."

Medel frisa, contudo, que as personagens não devem ser lidas como símbolos de gerações. A postura apolítica de Alicia, segundo ela, não representa a juventude que chacoalhou a Espanha em manifestações como a do 15-M, em 15 de maio de 2011, mas expressa uma outra maneira possível de estar no mundo.

É notável que a literatura de Medel não ceda à tentação de observar suas personagens com a condescendência das vítimas nem com a admiração afetada das batalhadoras suadas. Talvez seja porque ela mesma tenha uma origem parecida.

A escritora viveu a ausência de pais que trabalhavam o dia todo em empregos mal pagos e, quando adulta, pulava de bico em bico tentando chegar ao fim do mês. "Por muito tempo tive vergonha de perguntar sobre meus pagamentos quando atrasavam."

"Livros sempre foram escritos por pessoas com dinheiro, que podiam se dedicar a escrever por três, quatro anos sem problema. Era impossível que famílias trabalhadoras tivessem acesso à publicação. A literatura social do século 20, com algumas exceções, foi um retrato da classe operária feito pelas classes altas."

A coisa piora quando se adiciona o recorte de gênero. Medel, que fez carreira como poeta e editora, lembra casos de autoras que não conseguiam viajar para eventos de divulgação dos próprios livros porque não tinham com quem deixar os filhos.

"Em outros momentos da minha vida, acho que eu não poderia ter escrito esse livro, e escrevi roubando muito do meu tempo de descanso. Fiquei me perguntando se este livro seria o que eu queria escrever ou o que eu tinha tempo de escrever."

É uma reflexão que lembra o primeiro capítulo de "As Maravilhas", em que María pensa as razões que a impediram de se envolver com causas políticas enquanto era jovem. Estava ocupada demais ganhando o pão. Ou como ela mesma resume —"até para protestar é preciso ter dinheiro".

As Maravilhas

  • Preço R$ 64,90 (192 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Elena Medel
  • Editora Todavia
  • Tradução Rubia Goldoni
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