Elza Soares e Garrincha viveram o melhor e o pior do Brasil, mostra nova série

'Elza & Mané' examina crenças populares e tensões sob a ditadura em história de amor, vício e perseguições

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São Paulo

Antes de ir à Copa do Mundo de 1962, Garrincha fez uma promessa a Elza Soares. "Vou trazer a Copa para você", ele disse. Pelé se machucou, e o Mané teve de ser mais que um driblador —fez gols de cabeça, de fora da área, correu todo o campo e carregou o time rumo ao bicampeonato.

Cena da série documental 'Elza & Mané - Amor por Linhas Tortas'
Cena da série documental 'Elza & Mané - Amor por Linhas Tortas', do Globoplay - Reprodução

Mas aquela foi uma das últimas promessas que ele foi capaz de cumprir. "Logo que ele volta da Copa, ganha o [Campeonato] Carioca de 1962 em cima do Flamengo, dois gols dele. Só que é a partir dali que o romance estoura, e ele já está com os joelhos ruins", diz Caroline Zilberman, diretora da série documental "Elza & Mané - Amor por Linhas Tortas", sobre o casal, que chega nesta sexta-feira ao Globoplay.

Garrincha já era craque do Botafogo, enquanto Elza despontava como cantora de samba. Após uns flertes, Mané largou a mulher para ficar com a artista. E nunca mais foi o mesmo dentro de campo.

"Eu já tinha lido na biografia do [Garrincha feita pelo] Ruy Castro e fiquei com isso na cabeça, uma mulher que carrega a culpa pela decadência de um ídolo. Comecei a comentar com pessoas mais velhas e reparar que elas tinham na cabeça essa narrativa, de que ela acabou com a carreira dele. Decidi tentar entender isso."

Dividida em quatro episódios, a série acompanha a trajetória dos dois —que vieram de regiões pobres do Rio de Janeiro e foram mundialmente reconhecidos como gênios em suas áreas—, o romance intenso, o exílio, a violência doméstica e a derrocada do craque, que mesmo no auge sumia dos treinos para beber e sucumbiu ao álcool. Também desmistifica crenças populares.

"Ele não ligava para dinheiro. Não buscava os ‘bichos’ que o Botafogo pagava. Mas essa coisa de ser bobão, infantilizado, é tida como lenda. Se criou essa imagem, mas ele era um cara muito espirituoso. E a imprensa ia alimentando —eram jornalistas botafoguenses, estavam no dia a dia. Como no campo ele resolvia, botavam para debaixo do tapete. Quando parou de resolver, aí o bicho pegou e a Elza ficou sendo a culpada."

Elza assumiu então a responsabilidade de cuidar de Garrincha. Acabou vista primeiro como destruidora de lares e depois destruidora do craque.

"A sociedade tinha a tendência de pôr a culpa na mulher. E aí dá para imaginar as narrativas. ‘Essa mulher está fazendo a cabeça dele, desvirtuando um pai de oito filhas.’ Isso contribuiu, mas o que foi determinante foi a coincidência cruel de eles se apaixonarem no momento em que o joelho dele estava destruído."

Além da imprensa, eles foram perseguidos pela ditadura. Elza, que aparece meses antes de morrer no documentário, havia cantado num comício de João Goulart —presidente deposto pelo golpe—, eles tiveram a casa invadida e receberam ameaças até se mudarem para a Itália.

"Ela relaciona [as agressões] ao álcool. Diz que ele era tranquilo e carinhoso, o que se reflete em outros entrevistados. Mas ele teve uma decadência vertiginosa no fim dos anos 1970. Começou a beber mais, e ela tentava tirar a bebida. Virou um ambiente agressivo. Mas a Elza diz que ele era o amor da vida dela, e chegou a raspar a cabeça como promessa para ele parar de beber."

E houve uma última tentativa. "Ela disse ‘se eu te der um filho homem, você para de beber?’. Ele não bebeu durante a gravidez dela, mas, quando o menino nasceu, apareceu bêbado no hospital. Aí ela viu que não tinha mais chance."

Garrincha morreu em 1983, e Elza viveu um ostracismo na música até este século. Os dois morreram na mesma data, numa relação que diz mais sobre o Brasil do que a mera união de ícones do samba e do futebol.

"Ela era uma mulher negra, do morro, ganhou dinheiro cantando, mas achavam que roubava o Garrincha —era ela quem sustentava a casa", diz a diretora. "A ditadura considerava Garrincha perigoso porque estaria sendo influenciado por jornalistas do Partido Comunista. A perseguição a eles foi muito cruel, fruto do conservadorismo, do racismo e do machismo. Quando falo que é uma história sobre o Brasil, é também sobre os nossos piores lados como sociedade."

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