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Cinema

Em 'Ataque dos Cães', Jane Campion aproxima sexualidade da morte

Diretora avança sobre tema comum à sua filmografia, mas aqui a imaginação leva a consequências imprevisíveis

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Giovanna Bartucci

Psicanalista, é autora de "Onde Tudo Acontece – Cultura e Psicanálise no século 21" (Civilização Brasileira), livro vencedor do Prêmio Jabuti em 2014

Sexualidade, desejo, paixão e suas consequências. Essa parece ser a temática que Jane Campion coloca em movimento a cada novo longa-metragem.

Diretora e roteirista de "Ataque dos Cães", lançado no ano passado, concorrendo a 12 estatuetas do Oscar, a neozelandesa parece indicar que em face à sexualidade vivida, seja por questões culturais e/ou subjetivas, a morte está à espreita.

Kodi Smit-McPhee em cena do filme 'Ataque dos Cães', de Jane Campion - Kirsty Griffin/Netflix

Assim foi com a imperiosidade do desejo vivido por Frannie e James —vividos por Meg Ryan e Mark Ruffalo—, na metrópole contemporânea, em "Em Carne Viva", de 2003, também disponível na Netflix. Com a paixão e o amor vividos por Ada e George —Holy Hunter e Harvey Keitel—, na Nova Zelândia colonial, em "O Piano", de 1993. Ou pelo jovem poeta John Keats e seu grande amor Fanny Brawne —Ben Whishaw e Abbie Cornish—, na Londres do jovem século 19, em "Brilho de uma Paixão", de 2010, todos também roteirizados por Campion, os dois últimos disponíveis no Now.

Contudo, em "Ataque dos Cães", Campion avança. Ainda que seu tema permaneça o mesmo, diferentemente de seus outros longas, pouco a pouco, a trama ganha uma camada fina e delicada quando se percebe que os personagens que conduzem a narrativa, contada em cinco capítulos, vivem a sua sexualidade imaginariamente, com consequências imprevisíveis.

O ano é 1925. Phil —personagem de Benedict Cumberbatch— e George Burbank —Jesse Plemons— são irmãos. Proprietários de uma fazenda em Montana, aprenderam a arte da cavalaria com Bronco Henry, mentor que os ensinou ainda a caçar, conduzir pastoreios, em suma, a administrar a fazenda herdada dos pais. George é um homem gentil, atencioso, que se apaixona por Rose —Kirsten Dunst—, com quem vem a se casar.

Peter —Kodi Smit-McPhee—, filho de Rose, um rapaz magro, aparentemente frágil, deseja ser médico, como o falecido pai, de cuja sepultura cuida. Phil, caubói graduado com honras em letras clássicas, é rude e violento, não só com estranhos, mas também com os que lhe são próximos. A sua vida é regida por seu amor por seu mentor, morto há 20 anos. Bronco Henry o acompanha a cada brinde, refeição, banho no lago, a cada pastoreio, na paisagem que rodeia a fazenda.

Mas é quando as vidas de Phil e Peter se cruzam que tudo se altera. Vendo em Peter um jovem afeminado, cuja sexualidade aparente poderia denunciar a sua, e consequentemente a relação amorosa imaginária com Bronco Henry, na qual ainda se mantém, Phil passa a agredi-lo e humilhá-lo, de modo a transformá-lo em um "homem". Passa também a maltratar Rose que, claro, vem a se interpor entre os dois irmãos.

A violência de Phil em relação a ela, mais do que manifestar a sua misoginia, expressa o seu ressentimento pela impossibilidade de viver algo como o que George e Rose compartilham. A Phil lhe restam suas lembranças, assim como a cela de Bronco Henry, a qual trata com reverência. Peter, por sua vez, tudo o que deseja é cuidar de sua mãe, maltratada pela vida.

A torção da narrativa se dá no momento em que Phil, alterando o seu comportamento em relação a Peter, decide proteger o jovem, no intuito de mantê-lo sob sua custódia, reproduzindo assim sua relação com Bronco Henry.

O que aparentemente Phil não percebe é que Peter, um rapaz determinado e cuja fragilidade desaparece, sim, à medida que a narrativa se desenrola, aproxima-se dele com a intenção de vingar a mãe, salvando-a daquele que a humilha, a despreza e que a levou ao alcoolismo.

Não à toa, ao ler a Bíblia, Peter se detém no Salmo 22, versículo 20. "Livra-me da espada, livra a minha vida do poder do cão", ou seja, do inimigo que pode trazer consigo a morte, aqui a morte da mãe.

"Ataque dos Cães" é a resposta à pergunta com a qual Peter nos introduz na fazenda dos Burbank, em Montana: "Quando meu pai faleceu, eu só queria a felicidade de minha mãe. Que tipo de homem eu seria se não ajudasse minha mãe, se não a salvasse?". Um homem que mata por amor à mãe?

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