De Chico a Caetano, músicas escaparam da censura em troca de suborno na ditadura

Livro 'Mordaça' revela como casas como a Sony Music liberaram versos subornando oficiais com jantares e bebidas

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Lucas Nobile
São Paulo

O título é autoexplicativo —"Mordaça: Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários". Lançado recentemente pela Sonora Editora, o livro dos jornalistas e escritores João Pimentel e Zé McGill reúne depoimentos exclusivos de medalhões da música brasileira, além de tratar de 97 composições que combateram ou sofreram algum tipo de proibição.

Entre as inúmeras histórias contadas nas 31 entrevistas inéditas —com nomes que vão de Chico Buarque a Beth Carvalho, de João Bosco a Jards Macalé, passando por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Ney Matogrosso, entre outros—, a mais reveladora não é narrada por nenhum destes artistas, mas por um ex-funcionário de gravadora.

Caetano Veloso em sua casa em 1982, em retrato feito por Thereza Eugênia que estampa a capa do livro 'Caetano: Uma Biografia — A Vida de Caetano Veloso, o Mais Doce Bárbaro dos Trópicos', publicado pela editora Pensamento Cultrix - Thereza Eugênia/Divulgação

Em seu depoimento, Genilson Barbosa, que trabalhou como office boy e arregimentador da RCA, atual Sony Music, confirma a antiga suspeita de que, durante o regime militar, censores eram subornados em troca de liberações de letras de música.

Segundo o ex-funcionário, embora os pagamentos não fossem feitos diretamente em dinheiro, havia uma verba no orçamento da gravadora destinada a pagar almoços e bebidas aos censores e uma cota de discos a serem enviados de presente para os servidores da Divisão de Censura de Diversões Públicas.

"Eu tinha uma verba mensal na RCA para, às vezes, quando a coisa estava pesada, levar os censores para a churrascaria Estrela do Sul, em Botafogo. Essa verba era exclusiva para pagar os almoços com os censores. Não para liberar as obras oficialmente, porque a gente não podia ter certeza de que elas seriam liberadas, mas era para fazer uma boa política com eles", conta Barbosa no livro.

"Eu levava dois, três, quatro censores, a gente tomava vinho 'pra' cacete, comia muito e eu pagava aquela conta cara. Mas a gravadora tinha muita grana nessa época, e essa grana entrava no orçamento", conclui.

Na tentativa de manter uma boa relação com os censores, Barbosa chegou a ser convidado para casamentos dos servidores, foi goleiro do time de futebol amador do departamento e presenteou alguns deles com discos de artistas como Xuxa e Bezerra da Silva.

Foi dessa forma que conseguiu a liberação de clássicos como "O Mestre-Sala dos Mares", de João Bosco e Aldir Blanc, que anteriormente haviam tido versos vetados.

"O depoimento do Genilson confirma que gravadoras tinham uma verba reservada para essa prática. Era uma espécie de jabá da censura. A gente tinha muita vontade de entrevistar os censores, mas a maioria já morreu, e os que estão vivos não querem falar", diz João Pimentel.

Apesar da ausência dessas entrevistas, o livro apresenta uma série de documentos com as justificativas dos servidores públicos para vetar determinadas músicas.

Entre os principais alvos estavam letras que fizessem qualquer tipo de crítica ao regime autoritário dos militares, e também versos que, na visão oficial, atentassem contra "a moral e os bons costumes".

Neste último grupo de canções vetadas, se destaca Odair José, um dos entrevistados para o livro. Ele teve uma série de músicas censuradas, entre elas as conhecidas "Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)", "A Primeira Noite" e "Eu Vou Tirar Você Desse Lugar", em que o eu-lírico se declara para uma prostituta.

Havia também argumentos bizarros. Caetano Veloso conta no livro que os censores implicaram com "Nine Out of Ten", lançada no disco "Transa", de 1972, pelo simples fato de eles não conhecerem o significado da palavra "reggae", citada na letra da canção. Edu Lobo, por sua vez, teve duas músicas proibidas apenas por seus títulos —"Casa Forte" e "Zanzibar" eram instrumentais e nem sequer tinham letra.

"Por mais esdrúxulas que sejam as justificativas, a voz dos censores está ali. A censura era reacionária, machista, homofóbica e não diferenciava estilo musical. Os censores tinham um baixo nível intelectual", diz McGill.

Embora a maioria das histórias seja relacionada à época da ditadura militar –com destaque para o período entre 1968 e 1978, em que vigorou o AI-5, Ato Institucional nº 5–, a obra, cujo título foi inspirado no samba "Mordaça", de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, não se limita apenas àqueles tempos.

São citados também casos de censura ocorridos durante o Estado Novo, de 1937 a 1945, e outros das décadas de 1980 e de 1990, como a prisão de integrantes do Planet Hemp sob o argumento de que faziam "apologia das drogas". E outros ainda mais recentes, como o cancelamento da exposição "Queermuseu", de 2017, no Santander Cultural, em Porto Alegre, e a interrupção de um show de BNegão e Os Seletores de Frequência, em 2019, no Festival de Inverno de Bonito, em Mato Grosso do Sul.

"Como diz o [Gilberto] Gil no livro, são os ‘guardas de fronteira’, é o mundo velho com medo do mundo novo. Nosso livro é um tapa na cara daqueles gênios que dizem que música e política não se misturam", ironiza McGill.

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