Estilista Dener revive em peça baseada nas memórias de Maria Thereza Goulart

Angela Dippe e Thiago Carreira protagonizam encenação baseada em biografia da viúva de Jango

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Rio de Janeiro

No dia 13 de março de 1964, a então primeira-dama, Maria Thereza Goulart, sentiu medo. Ela recebera informações de que o presidente, João Goulart, sofreria um atentado em seu derradeiro ato popular. Às portas da ditadura, o comício da Central do Brasil reuniu 200 mil pessoas no centro do Rio de Janeiro. Jango pressionava o Congresso para implantar as reformas de base, que garantiriam a justiça social no país.

"Ele estava com pressão alta. No carro, suava frio. Perguntei ‘por que você vai fazer isso?’. E ele respondeu ‘esse discurso eu tenho que fazer, nem que seja o último’", ela conta. Além da preocupação com a saúde do marido, a ex-primeira-dama, conhecida pelo trabalho na Legião Brasileira de Assistência, a LBA, reafirmava sua atuação política. "Jango não foi compreendido na época. Ele sonhava com as reformas, mas foi tachado de comunista."

Aos 80 e muitos –sua idade permanece em segredo– Maria Thereza se lembra de tudo. Não à toa, as memórias sobem ao palco do teatro Eva Herz, destacando outra faceta de sua personalidade. A peça "Maria Thereza e Dener", do diretor Ricardo Grasson, mostra como a amizade da ex-primeira-dama com o estilista Dener Pamplona de Abreu ajudou a fundar a moda brasileira.

"Os diálogos ali reproduzidos são idênticos aos que eu tinha com Dener. Ele foi um dos amigos que mais lamentei perder", diz. Os atores Angela Dippe e Thiago Carreira recordam a amizade da dupla, desde os altos e baixos do ateliê Dener Alta-Costura até o exílio da família Goulart. A ideia da peça nasceu do livro "Uma Mulher Vestida de Silêncio —A Biografia de Maria Thereza Goulart", publicado pela editora Record, em 2019, de Wagner William.

A primeira-dama Maria Thereza Goulart, mulher do presidente João Goulart, veste um modelo do estilista Dener [sentado, atrás] em fotografia dos anos 1960
A primeira-dama Maria Thereza Goulart, mulher do presidente João Goulart, veste um modelo do estilista Dener [sentado, atrás] em fotografia dos anos 1960 - FSP-Ilustrada-16.10.98

Entre as primeiras-damas, Maria Thereza não esconde a preferência pelo carisma e trabalho de Ruth Cardoso. Atualmente, diz desconhecer as funções de Michelle Bolsonaro. "Eu não a vejo, ela aparece tão pouco. Não sei o que ela faz", afirma.

Encantada com o trabalhado de Dener, que ainda trabalhava na butique Casa Canadá, Maria Thereza passou a tomar lições de moda e comportamento com o estilista. A peça mostra cenas em que ela desfilava na Granja do Torto para aprender, sob o escrutínio do amigo, a caminhar com elegância. Também entendeu o inverso –como deveria se sentar– e, sobretudo, o que fazer numa festa de desconhecidos. "Dener foi um guru na minha vida", vaticina.

O estilista, por sua vez, encontrou a modelo ideal para a fundação da moda brasileira. Se antes as mulheres imitavam as tendências francesas, na década de 1960 tiveram uma referência de estilo em território nacional.

Maria Thereza Goulart com o marido, o ex-presidente João Goulart, durante o comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro, em março de 1964
Maria Thereza Goulart com o marido, o ex-presidente João Goulart, durante o comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro, em março de 1964 - FSP-Brasil-23.11.97

Naquela época, Dener já era famoso por ter vestido a modelo Danuza Leão e a primeira-dama Sarah Kubitschek. O estilista cultivou uma personalidade excêntrica. Uma das lendas conta que ele tomava banho de leite para dar viço à pele. Em seguida, distribuía o líquido sagrado para as plêiades do bairro. Folclores à parte, ele foi o único amigo a visitar o casal João e Maria Thereza Goulart no exílio, quando moraram numa fazenda no Uruguai. Dener morreria de cirrose hepática em 1978.

No guarda-roupa de Maria Thereza, havia oito vestidos. O estilista não desenhou peças "bafônicas". Segundo ele, o gênero deveria ser a simplicidade, e as cores claras eram ideais ao tipo "moreno e bem brasileiro".

Dessa forma, Maria Thereza passou a estampar capas de revistas do Brasil e do mundo. A Time, dos Estados Unidos, a considerou uma das "belezas reinantes", ao lado de Grace Kelly, a princesa de Mônaco, e Jacqueline Kennedy. A comparação com a primeira-dama americana era constante, tanto que Dener se inspirara nos vestidos de Kennedy para vestir Maria Thereza.

"Ele fez tudo. De roupas para usar pela manhã até coquetéis. Só pedi para que ele não fizesse tailleur, porque não gosto de usar. Ele me dizia que eu não podia me vestir como uma adolescente."

Maria Thereza e Dener estiveram juntos no esboço da modernização do país. A moda era confluente ao projeto de Brasília, de Juscelino Kubitschek. Tendo sido segunda-dama nos governos JK e Jânio Quadros, Maria Thereza viu que a beleza não era dádiva, mas uma conquista individual. Surgiu, então, uma indústria, com xampus, maquiagens de toda sorte e dietas assustadoras.

Dener não imitava as grifes europeias. Criou um estilo próprio para as brasileiras, que admiravam a primeira-dama. Febris, as donas de casa se apinhavam em salões de beleza para ostentarem o chamado coque Maria Thereza.

Morando na Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro, a ex-primeira-dama gosta de fazer caminhadas e ginástica, três vezes na semana. "Não gosto de ficar parada. Isso é importante, porque nessa idade, qualquer coisa, você morre de repente", ela diz, rindo.

Maria Thereza ecoa um projeto de Brasil inacabado. "A mulher brasileira é a mais bonita do mundo. Eu sou fã da mulher brasileira, principalmente a carioca, que é simples e elegante."

Ela avalia que a moda mudou muito. Não há mais o luxo de outrora. Mesmo em 1980, quando morou no Rio Grande do Sul, ainda usava vestidos pomposos, que caíram em desuso, segundo ela, porque já não há mais festas e encontros como no passado. Maria Thereza sustenta a tese de que a moda brasileira é "descontraída" –sendo, ela mesma, praticante da descontração. "A moda precisa combinar com a personalidade de cada um."

Depois de décadas, ela segue os ensinamentos de Dener que, certa vez, declarou ser agradável costurar para Maria Thereza, porque a primeira-dama tinha as medidas perfeitas. Podre de chique, ela concorda. "Como sou muito magrinha, tudo fica bem em mim."

Maria Thereza e Dener

  • Quando Até 28 de abril. Qua. e qui.: às 20h.
  • Onde Livraria Cultura - av. Paulista, 2073, São Paulo
  • Preço R$ 25 a R$ 50
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Angela Dippe e Thiago Carreira
  • Direção Ricardo Grasson
  • Texto José Eduardo Vendramini e Wagner William
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