Governo Bolsonaro censura Gentili mas disse dias antes que não poderia censurar

Documento do Ministério da Justiça de 10 de março contradiz ordem de proibir 'Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola'

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Brasília

Cinco dias antes de mandar censurar o filme "Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola", o Ministério da Justiça citou o trauma da ditadura militar para afirmar que não cabe ao estado "proibir filmes, cortar cenas e vedar o acesso da população a qualquer tipo de obra".

Esse argumento foi apresentado em documento assinado em 10 de março pela Coordenação de Políticas de Classificação Indicativa e entregue como parte de um pedido de resposta requerido pelo sistema de Lei de Acesso à Informação.

O trecho é uma espécie de resposta padrão do ministério a questionamentos sobre recomendações de restrições a filmes e outras obras. Também foi divulgado em 2017 no site oficial da pasta.

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Cena do filme 'Como se Tornar o Pior Aluno da Escola', produzido por Danilo Gentili, com participação Fábio Porchat

Na última terça-feira, porém, o Ministério da Justiça determinou que os serviços de streaming suspendam a exibição do longa ou paguem R$ 50 mil diariamente de multa. Ainda decidiu, no dia seguinte, mudar a classificação etária do filme, de 14 anos para 18 anos.

As investidas do governo contra o filme escrito pelo humorista Danilo Gentili se devem a críticas de bolsonaristas a uma cena específica. Nela, o personagem de Fábio Porchat instiga dois garotos menores de idade a pararem de discutir e pede que o masturbem.

Lançado originalmente nos cinemas no final de 2017, o filme chegou à Netflix e outras plataformas de streaming há poucas semanas. Na ordem para censurar o filme, o Ministério da Justiça citou a necessidade de "proteção à criança e ao adolescente". Já ao mudar a classificação indicativa, a pasta apontou cenas de "ato de pedofilia" e de "situação sexual complexa" como justificativas. As duas ordens foram publicadas no Diário Oficial da União.

Nos documentos anteriores, em que rechaça qualquer forma de proibição às obras audiovisuais, porém, a Justiça afirmou que a Constituição Federal de 1988 "põe fim à censura" e que cabe à União "exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão".

"Dessa maneira, a classificação Indicativa torna-se, na verdade, o maior indicador de que a censura institucional, experimentada pelo Brasil em diversos momentos de sua história e, mais recentemente, no governo militar, não se aplica à presente conjuntura sociopolítica", afirmam os mesmos documentos.

"Não compete, portanto, ao Estado proibir filmes, cortar cenas e vedar o acesso da população a qualquer tipo de obra, bem como promover qualquer restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão ou à informação", diz ainda a mesma pasta que decidiu censurar o longa de Gentili.

Em 1986, o então presidente José Sarney chegou a censurar a exibição do filme "Je Vous Salue, Marie", de Jean-Luc Godard. A obra conta a história de uma garota que engravida sem ter feito sexo, como aconteceu com Maria, mãe de Jesus para os cristãos.

Em outro caso recente, foi uma decisão judicial, e não do governo, que determinou a remoção de conteúdo de plataforma de streaming. Em dezembro de 2020, a Justiça do Rio de Janeiro ordenou à Netflix que retirasse de seu catálogo um especial de Natal do Porta dos Fundos. A censura foi derrubada pelo STF, o Supremo Tribunal Federal.

Procurados, o Ministério da Justiça e a Secretaria Especial da Cultura não responderam se há contradição entre posições já divulgadas pelo governo sobre a censura e a ordem para vetar a exibição de "Como se Tornar o Pior Aluno da História".

A Justiça afirmou apenas que a "medida cautelar" de retirada do filme considera "a necessária proteção da criança e adolescente como consumidor, conforme o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, e está dentro das competências do ministério".

O documento que rechaça a censura tem sido apresentado pelo Ministério da Justiça em pedidos de acesso aos relatórios de classificação indicativa de filmes.

O Ministério da Justiça afirma que as obras são analisadas levando em consideração três temas —sexo, drogas e violência. Há "atenuantes" ou "agravos de contexto" que podem elevar ou diminuir as faixas etárias.

"Por exemplo, se há um contraponto imediato, a gradação etária pode ser atenuada. Por outro lado, se não há punição ao agressor ou se a cena é exibida de forma valorizada, sem contraponto ou atenuantes de composição, apresentação de conteúdo positivo, entre outros, poderá haver alteração nas faixas etárias, que servem apenas como referência", afirma a Justiça.

A pasta também aponta, no documento, que a classificação indicativa é objetiva e não há "interferências de questões morais".

Diversos advogados afirmam que a administração não pode tirar um filme de circulação, porque isso fere a liberdade de expressão prevista na Constituição. Dizem ainda que o conteúdo de uma obra audiovisual poderia ser contestado só na Justiça, mas que mesmo assim as chances de o produto deixar de ser exibido são mínimas.

​"Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola" seguia disponível nos serviços de streaming na data da publicação desta reportagem. No início da semana, Globoplay e Telecine afirmaram que não removeriam a obra do catálogo.

O secretário especial da Cultura, Mario Frias, afirmou que a cena é uma afronta às famílias. Disse ainda que o longa usa a pedofilia como forma de humor.

O ministro da Justiça, Anderson Torres, declarou que o filme tinha "detalhes asquerosos".

Pedidos de análise de faixa etária são enviados ao Ministério da Justiça com frequência e podem ser acatados ou não. Emissoras e plataformas também podem recorrer ou não das novas decisões. A classificação é uma indicação aos pais e responsáveis, não uma proibição.

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