Guerra na Ucrânia expõe atraso dos EUA na proteção a patrimônios culturais

Americanos tentam suceder os 'monuments men' da Segunda Guerra mapeando sítios que podem ser devastados em conflitos

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Graham Bowley
The New York Times

Por meses, antes que as bombas começassem a cair, Hayden Bassett observou as riquezas culturais da Ucrânia —as catedrais de Kiev, os edifícios históricos de Lviv, os museus espalhados pelo país e os sepulcros antigos que pontuam a paisagem da estepe.

Usando imagens obtidas via satélite, o arqueólogo Bassett, de 32 anos, diretor do Laboratório de Monitoração de Patrimônio Cultural, no Museu de História Natural da Virgínia, nos Estados Unidos, acompanhou e mapeou boa parte do patrimônio cultural da Ucrânia, como parte de um esforço civil para demarcar os sítios que poderiam se ver devastados em uma guerra.

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Hayden Bassett, diretor do Laboratório de Monitoramento do Patrimônio Cultural, em um hotel em Ithaca, no estado americano de Nova York - Heather Ainsworth/The New York Times

Esse é o tipo de trabalho que deveria estar sendo realizado por um quadro de especialistas do Exército dos Estados Unidos, que estão sendo recrutados para suceder aos famosos "monuments men" da Segunda Guerra Mundial —literalmente, os homens dos monumentos—, que recuperaram milhões de tesouros europeus que haviam sido saqueados pelos nazistas.

Mas mais de dois anos depois de o Exército ter anunciado, com bastante alarde, o seu novo programa, que leva um nome inspirado pelo antecessor, e envolveria especialistas em arte trabalhando como parte das Forças Armadas para preservar os tesouros do passado, a operação ainda não está funcionando.

"Há muitos problemas de implementação", reconheceu Corine Wegener, diretora da Smithsonian Cultural Rescue Initiative, uma instituição parceira do programa. "Estamos falando de uma capacidade", ela disse, "que o Exército deveria ter mas no momento não está disponível para os comandantes".

A falta dessa capacidade se tornou premente com a invasão pela Rússia, agora que explosões ameaçam os domos dourados e afrescos antigos das cidades ucranianas. A pandemia certamente influenciou o atraso nas contratações, mas os candidatos interessados em se integrar à unidade e os líderes encarregados de formar os grupos apontaram diversas outras questões, além dessa.

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Corine Wegener, diretora da Smithsonian Cultural Rescue Initiative, e o coronel Scott DeJesse, que têm ajudado o Exército dos EUA a contratar e treinar especialistas para proteger tesouros culturais, em Tampa, no estado americano da Flórida - Zack Wittman/The New York Times

Alguns candidatos descreveram um processo complicado de seleção, com fichas de inscrição perdidas e comissões de seleção do Exército trabalhando devagar demais para decidir sobre a contratação dos muitos arqueólogos, especialistas em conservação, museólogos e arquivistas civis que expressaram interesse.

Um dos líderes do esforço, o coronel Scott DeJesse, pintor e oficial de reserva do exército, no estado americano do Texas, disse que as forças armadas estão determinadas a fazer com que o projeto aconteça, mas que uma grande burocracia —cujas missões cruciais incluem avaliar ameaças militares emergentes— está sendo solicitada pela primeira vez a comissionar especialistas civis em patrimônio cultural diretamente como oficiais das Forças Armadas.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os "monuments men" eram soldados que já estavam servindo nas Forças Armadas e por acaso eram especialistas em história da arte ou outras disciplinas.

"Veja, eu planejo mudar o mundo com essa equipe e, sim, preferiria que as coisas acontecessem mais rápido", disse DeJesse, que não controla o processo de seleção e se concentra no lado operacional da nova unidade. "As pessoas estão enrolando? Não. O projeto é de alta prioridade? Não. É essa a velocidade com que as coisas acontecem em uma grande organização como o Exército."

O plano reflete o reconhecimento de que as Forças Armadas americanas precisam de especialistas acadêmicos capazes de aconselhar os comandantes e autoridades locais sobre como proteger o patrimônio cultural, uma necessidade que ganhou reconhecimento depois da destruição e saque de objetos antigos durante e depois das guerras no Iraque e no Afeganistão. Os especialistas, entre outras coisas, delinearão sítios que devem ser evitados em ataques aéreos e combates terrestres e demarcarão lugares como museus, que devem ser protegidos contra saques.

Além do valor inerente desse trabalho de preservação, as autoridades americanas dizem que esforços para proteger legados culturais têm o poder de atrair a cooperação das populações locais e fomentar a paz, quando os combates cessam. E, em termos de diplomacia e de poder brando, ver forças americanas ajudando a salvar os tesouros culturais de outros países pode ser uma imagem poderosa na batalha por corações e mentes.

"Os ‘monuments men’ são uma das melhores imagens da Segunda Guerra Mundial", disse Andrew Kless diretor do programa de estudos internacionais da Universidade Alfred, no interior do estado de Nova York, e candidato à nova unidade; ele foi informado em 2020 que havia sido selecionado para um posto como oficial, mas continua a aguardar notícias sobre sua indicação final.

"Isso está demorando mais do que qualquer coisa que eu tenha experimentado", ele disse. "Mas não me fez mudar de ideia quanto a me envolver. Estou pensando no longo prazo. Esse é um programa novo."

O coronel Marshall Straus Scantlin, diretor de iniciativas estratégicas no comando de assuntos civis e operações psicológicas do Exército americano, disse que a pandemia havia dificultado a formação de comissões de seleção e que o recrutamento é um processo que em geral é conduzido em pessoa. "O processo demora, e queremos garantir que façamos a coisa do jeito certo", ele disse.

Diversas pessoas que estão acompanhando o processo de contratação disseram estar preocupadas por conta da rejeição de alguns candidatos qualificados. E diversos candidatos civis receberam uma determinada patente inicial e depois foram rebaixados, o que talvez reflita a resistência institucional a aceitar nas fileiras do exército recém-chegados que possam interferir com os oficiais de carreira. Dois dos candidatos escreveram a senadores de seus estados para reclamar.

DeJesse disse que membros do estado-maior do exército disseram que às vezes era difícil equiparar a experiência e o nível de senioridade de um civil e sua experiência profissional com as patentes militares e que as patentes designadas para especialistas civis selecionados estavam sendo revisadas.

Catedral de Santa Sofia e o monumento a Bohdan Khmelnytsky no centro de Kiev, capital da Ucrânia - Sergei Supinsky/AFP

Mas ele defendeu a qualidade dos candidatos selecionados até agora. Quanto aos rejeitados, ele disse que alguns candidatos não atendiam às necessidades específicas do trabalho, de acordo com seus currículos.

Outros tinham experiência considerável, mas não o tipo de experiência delineada nas especificações do exército, que requerem 48 meses de experiência de trabalho em um campo especializado antes que o candidato possa receber um diploma avançado.

Em outubro, durante uma reunião virtual que incluía candidatos ao programa de proteção do patrimônio cultural, DeJesse falou sobre a frustração quanto à longa demora do processo. "Eu sinto a mesma coisa que vocês, e agradeço pela paciência", ele disse. "É muito importante que vocês aguentem a espera o melhor que puderem."

Os especialistas serão parte do Comando de Assuntos Civis e Operações Psicológicas do exército, que tem por base Fort Bragg, no estado da Carolina do Norte. DeJesse, que serviu ciclos de operações no Iraque e no Afeganistão, informou que a unidade pode chegar a ter até 33 especialistas, "o que seria o maior número de oficiais especializados em monumentos desde o final da década de 1940", ele disse.

Ele disse que diversos especialistas que já são reservistas das Forças Armadas haviam se transferido com sucesso para a nova função e que alguns já estavam trabalhando —por exemplo, no treinamento de unidades que estão sendo deslocadas para a América Central, a África e outras regiões, a fim de ajudar países a identificar e preservar seu patrimônio cultural.

Outros 12 terão sua candidatura revisada por um comitê de seleção em maio, ele disse.

Enquanto esperam, os candidatos continuam a submeter documentação e a se preparar para os exames físicos do Exército, pelos quais passarão quando comissionados. (Eles incluem levantar 27 quilos de peso três vezes, lançar uma bola de exercício de 4,5 quilos, fazer flexões consecutivas por dois minutos, correr arrastando e carregando um peso, exercícios de prancha e "leg tucks", e uma corrida de 3,2 quilômetros.)

Elizabeth Varner, especialista em administração de museus e em leis de patrimônio cultural, selecionada como candidata, disse que está empolgada para se qualificar para um serviço "desesperadamente necessário".

"A proteção ao patrimônio cultural é um processo contínuo", ela disse. "Demora um bom tempo para que estejamos preparados para responder e, quando os acontecimentos surgem, você precisa estar preparado, para poder reagir de imediato".

Esse tipo de preparação especializada por enquanto está sendo realizada por especialistas civis como Bassett, no caso da Ucrânia. Ele foi selecionado como capitão para uma nova unidade de reserva, quando os "monuments officers" —ou os oficiais dos monumentos— enfim começarem a operar.

Pelos últimos 18 meses, Bassett e sua equipe no laboratório da Virgínia, parte de uma rede mais ampla de cerca de 10 pessoas, treinaram soldados que estavam a caminho da África Oriental sobre a preservação do patrimônio cultural da região, e usaram imagens obtidas por satélites para monitorar sítios atingidos por desastres naturais em Honduras e no Haiti, e por conflitos armados em Nagorno-Karabakh, na região de Tigray, na Etiópia, e no Afeganistão.

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Visível no horizonte à direita, um kurgan, ou antigo túmulo cita, coberto por árvores perto de Bezvodivka, Ucrânia - Brendan Hoffman/The New York Times

Antes da guerra na Ucrânia, a monitoração pela equipe de Bassett incluía sítios na parte leste do país e na Crimeia, regiões que já estavam ocupadas por forças russas ou separatistas que contam com o apoio da Rússia. Bassett disse que a equipe havia encontrado não só destruição causada pelo conflito como também a construção de novos monumentos.

Por exemplo, Savur-Mohyla abriga um "kurgan", um monte funerário da antiguidade. Um monumento referente à Segunda Guerra Mundial que os soviéticos tinham construído no local foi destruído em combates em 2014. Agora, o monumento está sendo reconstruído com ajuda russa.

Savur-Mohyla está entre os mais de mil sítios que podem ser prejudicados por uma expansão do conflito, de acordo com o crescente banco de dados do laboratório, a espécie de recurso que Bassett espera venha a desempenhar um papel importante no trabalho da unidade do Exército quando ela entrar em operação.

"Isso vai permitir que eu e outros futuros oficiais de monumentos comecemos a trabalhar em alta velocidade", ele disse, sobre o trabalho do laboratório em geral. "Estou aguardando ansiosamente por esse momento. Assim que estivermos de uniforme, estaremos fazendo o trabalho nos Estados Unidos mas também teremos a oportunidade de agir nos locais de interesse, e de forma significativa."

Tradução de Paulo Migliacci

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