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Guerras como a da Ucrânia podem dividir famílias, mostra HQ 'Terra-Pátria'

Obra de Nina Bunjevac enfatiza choque de ideologias que culminou nos conflitos bélicos nos Bálcãs nos anos 1990

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São Paulo

O pai da quadrinista canadense Nina Bunjevac morreu em agosto de 1977, numa garagem de Toronto, na explosão acidental de uma bomba que ele e dois colegas de um grupo nacionalista sérvio construíam para um ataque terrorista ao consulado local da Iugoslávia.

A autora tinha três anos de idade na época e vivia em Belgrado, então capital iugoslava e hoje capital da Sérvia. Em 1975, ela e a irmã foram levadas para a Europa pela mãe, em fuga da vida de abusos com o marido com posicionamentos cada vez mais radicais.

No país natal de sua família, Nina Bunjevac foi criada na casa dos avós maternos comunistas, sobreviventes da Segunda Guerra Mundial e apoiadores do então presidente Josip Broz Tito, morto em 1980. A autora narrou nas 160 páginas em preto e branco do álbum "Terra-Pátria" parte de sua infância, com ênfase no choque de identidades e ideologias que culminou tanto em sua existência quanto na dissolução da Iugoslávia e nos conflitos bélicos nos Bálcãs nos anos 1990.

"O questionamento de uma herança ancestral permeou o zeitgeist da minha geração, especialmente aqueles que cresceram na antiga Iugoslávia", diz a autora, sobre o ponto de partida de "Terra-Pátria".

"Após a dissolução do país, nossas culturas individuais foram profundamente enraizadas em nacionalismo e tribalismo. ‘Ou você está conosco ou está contra nós’ passou a ser o lema do dia. Fazer um indivíduo deixar o coletivo e questionar o status quo —sejam seus ancestrais, seus líderes ou as autoridades da igreja– era visto como o maior dos pecados. As pessoas que fizeram isso foram incrivelmente corajosas. 'Terra-Pátria' foi a minha contribuição para essa causa que, neste momento particular da história, se tornou uma questão existencial."

Bunjevac deu a "Terra-Pátria" ares documentais. Sua mistura de nanquim com técnicas de pontilhismo dão contornos hiper-realistas à obra. Mesmo fazendo um registro extremamente pessoal, ela evita expor suas avaliações em relação às vivências e aos posicionamentos de seus familiares. A autora diz ter encontrado o tom da obra depois de participar de um workshop com artistas nascidos ou criados em ex-repúblicas iugoslavas que fugiram da região e se estabeleceram em outras partes do mundo. A quadrinista classifica a experiência como "quase mística".

"Até então, eu pretendia escrever com emoção e com um ponto de vista político definido. Depois dessa experiência, mudei meu ponto de vista para uma perspectiva mais pacífica, como uma contadora de histórias neutra, que expõe os fatos e conta com a inteligência do leitor para tirar suas próprias conclusões. Eu não queria usar sentimentalismo para manipular o leitor e não queria ofender ninguém. Sempre procurei maneiras de expor nossas semelhanças, não nossas diferenças."

A história de Bunjevac como autora de HQs é recente. Ao retornar da Iugoslávia para o Canadá aos 16 anos, ela planejava viver como escritora, mas não dominava plenamente o inglês. Ela então estudou design gráfico e artes plásticas. Depois de anos trabalhando com pinturas a óleo e escultura, uma década atrás ela publicou seu primeiro álbum, "Heartless", inédito em português, narrando as aventuras suburbanas de uma protagonista depressiva antropomorfizada com feições felinas.

"Terra-Pátria" foi publicada no Canadá em 2014 e depois, em 2019, saiu "Benzimena", publicada no Brasil no mesmo ano pela editora Zarabatana Books. É uma livre adaptação do mito grego de Ártemis e Sipriotes, mas inspirada nas vivências da autora como sobrevivente de duas tentativas de estupro durante a juventude —a primeira delas na Sérvia, quando tinha 15 anos, e outra no final de sua adolescência, por seu guardião legal, depois de voltar ao Canadá para finalizar o ensino médio.

Bunjevac começou a experimentar com quadrinhos para dar vazão à sua persona contadora de histórias, influenciada pela avó materna, uma das protagonistas de "Terra-Pátria", sobrevivente da Segunda Guerra Mundial e grande antagonista ideológica do pai da autora.

"Se não fosse por minha avó, eu nunca teria me tornado uma contadora de histórias. Eu costumava praticar a minha escrita escrevendo as memórias de guerra dela. Ela foi uma criança-soldado e se juntou aos guerrilheiros iugoslavos aos 16 anos. E, caramba, como ela sabia contar uma história! Ela mantinha uma sala inteira sob seu feitiço!"

"Terra-Pátria" investe nos contrapontos e nas vivências paralelas entre o pai e a avó de Bunjevac. Pete Bunjevac nasceu numa vila croata do antigo Reino da Iugoslávia, filho de pais sérvios. Ele viu a dissolução do país em meio à Segunda Guerra, testemunhando a saída dos invasores nazistas e a chegada dos comunistas ao poder. Já a avó atribuiu sua sobrevivência ao seu posicionamento precoce pró-União Soviética.

Bunjevac vai longe em seu retrato dos conflitos entre sérvios e croatas, com a chegada dos dois grupos à península balcânica por volta do mesmo período, há cerca de 1.500 anos, com ambos pertencentes a uma mesma etnia, mas rompidos depois de a Croácia se aproximar da Igreja Católica e a Sérvia, da Igreja Ortodoxa. Na avaliação dela, essa cisão entre as duas igrejas é análoga às tensões entre Ocidente e Oriente, em curso até hoje e representada pelas tensões entre Estados Unidos e Otan e a Rússia.

"Ambas as contrapartes são expansionistas e tendem a colonizar. Essa dinâmica ocorreu ao longo da história e durante a Guerra Fria", diz a autora. "O que estamos testemunhando agora [com a guerra na Ucrânia] é o mais recente na disputa global entre as encarnações mais modernas dessa divisão, a Otan e a Rússia."

"Em nenhum lugar estão as réplicas dessa divisão do cristianismo em catolicismo e ortodoxia oriental tão evidentes quanto nos Bálcãs, já que a península balcânica tem sido uma fronteira histórica entre os dois. Misturar a mentalidade de tribo de guerra com religiões institucionais impostas pelas culturas guerreiras dominantes, e a subsequente divisão do cristianismo em catolicismo e ortodoxia oriental, foi uma receita para o desastre. Então, irmão lutou contra irmão, porque um apoiou Roma, ou a Otan, e outro apoiou Constantinopla, ou ortodoxia oriental, ou seja lá o que for."

Terra-Pátria

  • Preço R$ 98 (160 páginas)
  • Autor Nina Bunjevac (tradução de Claudio R. Martini)
  • Editora Zarabatana Books
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