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'Poemas Reunidos' expressa aprimoramento estético de Miriam Alves

Coletânea de poemas, que cobre sua produção no período de 1983 a 2020, é a trajetória de amadurecimento da autora

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A recente renovação do mercado editorial brasileiro —antes majoritariamente do capitalismo explorador macho, branco e machista– tem sido fundamental para a divulgação de nomes de autores negros (antigos e novos) de todos os portes e gêneros. Se todos têm ou não qualidade, são outros 500. Importante é que esses autores existem, sempre existiram e são ou foram vítimas da crítica acadêmica discriminatória e de seleções editoriais pautadas por privilégios de parentesco, classe, ou pura bajulação de colunismo social.

Até receber este "Poemas Reunidos", de Miriam Alves, eu nunca tinha ouvido falar dessa autora negra, que nasceu em 1952 e publica desde 1983. Minha ignorância se deve em parte a um desinteresse por temáticas frequentes na chamada "literatura negra" (a "descoberta" da negritude, por exemplo, que nunca me moveu ou inspirou, como se diz, a escrever literatura). Mas é ignorância que se deve também a uma lacuna na formação de estudantes de letras da minha época.

Miriam Alves foi colaboradora constante da publicação "Cadernos Negros", o que remete à "lacuna" a que me refiro. Série literária independente, que surgiu no final dos anos 1970 como resistência à exclusão de autores negros do mercado, os "Cadernos" eram vendidos em bancas de livreiros montadas nos corredores das instalações precárias da faculdade de letras da Universidade de São Paulo, onde estudei de 1977 a 1986.

Capa do livro 'Poemas Reunidos', de Miriam Alves, publicado pela editora Fósforo
Capa do livro 'Poemas Reunidos', de Miriam Alves, publicado pela editora Fósforo e Luna Parque no projeto Círculo de Poemas - Reprodução

Os "Cadernos", vistos como uma espécie de produto de "gueto", "literatura engajada", não entravam, obviamente, na sala de aula, assim como não entrava a poesia marginal, ou "poesia de mimeógrafo", produzida e vendida pelos próprios autores, de mão em mão, e tratada com certo descaso pela crítica "bem-pensante" (que incluía alguns dos professores das letras, todos brancos).

Daqueles "Cadernos" expostos na banca do livreiro-mascate, eu mesma passava ao largo (minha questão literária era outra, já naquele tempo, uma nostalgia, uma agonia de imigrante pobre que perdera, poucos anos antes, uma infância na cidade de Recife). Entendi que, em literatura, eu só escreveria sobre o que eu vivesse ou tivesse vivido.

Não podia escrever sobre senzalas, candomblé ou orixás (criada num misto de protestantismo e ateísmo, eu vinha de outras paradas; negritude e "marginalidade" não tinham apelo literário sobre mim, embora também fossem elementos da minha identidade).

Com perdão da digressão, e já voltando ao que interessa, não poderia imaginar que naqueles "Cadernos" houvesse uma poeta como Miriam Alves, cuja poesia nem se restringe aos temas da negritude (embora seja permeada por isso) nem se condiciona à denúncia pura e simples, resultante dos marcadores de raça ou classe.

Neste momento de "renascimento" editorial de seu trabalho –de reconhecimento já consolidado, inclusive com publicações fora do país–, o que se acompanha nesta coletânea de poemas (que cobre sua produção no período de 1983 a 2020) é a trajetória de amadurecimento poético da autora.

Exemplo desse aprimoramento estético que foi se operando em sua linguagem poética pode ser notado no confronto entre os versos um tanto crus de "Treze de Maio" (de 1987), profissão de fé do inconformismo, poema-manifesto, para a elaboração complexa da crítica social e política em "Cenário Urbano" –em que o olhar lírico se ocupa da captura da "coisa em si" ao avesso, como de fato ela deve se transfigurar na poesia de qualidade:

"Cenário urbano/ o viaduto indigente/ o prédio bêbado/ o assalto ao banco de sangue/ vivo vivo vivo vivo/ ambulante cambaleante agonizante/ a vida em cruz exorcizou a vida/ o que reluz é engano/ sonâmbulo."

Poesia de indagação existencial, equilibrada entre a elaboração da forma e a expressão de uma subjetividade afetada pelo sentimento do mundo de sua época, numa interpretação profunda de certos temas (um feminismo, um erotismo vigoroso, de metáforas insólitas) e mesmo em exercícios, experimentos de linguagem à la poesia concreta aqui e ali, não deixa nada a desejar à obra de ninguém.

Mas deixa uma questão, do meu ponto de vista: a poesia de Miriam Alves não seria mais conhecida hoje se tivesse sido lançada com o mesmo estardalhaço e apadrinhamento com que lançaram a poeta branca e católica Adélia Prado, em 1976? Se Alves não tivesse ficado relegada às publicações do "gueto", sua poesia não teria entrado na sala de aula da USP, tal qual entrou a de Prado na mesma época? E, pergunta que não quer calar: se Alves fosse branca, sua poesia não teria tido publicação formal, repercussão e consagração ainda maior do que esta que conseguiu sozinha, ao longo de tanto tempo?

Poemas Reunidos

  • Preço R$ 84,90 (377 págs.)
  • Autoria Miriam Alves
  • Editora Fósforo e Luna Parque
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