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Pus cinco anos na Rússia numa mala, diz bailarino brasileiro que deixou o país

Dançarinos de companhias renomadas como o Bolshoi abandonam carreiras no auge por causa da guerra na Ucrânia

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Rio de Janeiro

A notícia da invasão da Ucrânia pelas tropas russas, há duas semanas, deixou o bailarino brasileiro Victor Caixeta, de 22 anos, aturdido num quarto de hotel em Vladivostok, cidade no extremo leste da Rússia. Enquanto os tanques de Vladimir Putin cercavam Kiev, a angústia de sua parceira em cena, a ucraniana Iekaterina Tchebinika, só aumentava. Ao telefone, sua família relatava as primeiras explosões na capital da Ucrânia.

bailarino branco de torso nu e leggings se alonga
O dançarino Victor Caixeta, primeiro solista do Balé Mariinsky, de São Petersburgo - Yulia Mikheeva/Divulgação

Nas últimas semanas, a dupla de bailarinos esteve na última estação da ferrovia transiberiana para as apresentações de "La Bayadère", no teatro Primorsky, uma filial do Balé Mariinsky. Com medo, os dois bailarinos decidiram interromper as performances e voltar às pressas a São Petersburgo.

Na segunda maior cidade da Rússia, Caixeta percebeu uma realidade bem diferente do noticiário da imprensa local, que propagava informações falsas ou desencontradas. Todas as madrugadas, o brasileiro enfrentava filas nos bancos, que já não tinham dólares ou euros para suprir a demanda da população.

Com os rumores sobre o decreto de lei marcial no país, ele entrou, na sexta-feira, no grupo de Instagram de bailarinos brasileiros na Rússia para decidir o que fazer. Sofrendo com as sanções econômicas e prestando solidariedade aos colegas ucranianos, Caixeta, primeiro solista do Mariinsky, de São Petersburgo, David Motta Soares, solista principal do Bolshoi, e Evandro Bossle, solista do teatro Stanislávski, ambos de Moscou, saíram do país, deixando suas carreiras em suspenso.

Os bailarinos usaram rotas diferentes, mas todos eles abandonaram a carreira em um momento especial. "Eu não conseguia dormir em Vladivostok. Agora perdi tudo o que sempre sonhei na minha vida, todas as estreias programadas para este ano. Deixei meu apartamento em São Petersburgo todo mobiliado, até com o meu computador", diz Caixeta. "Pus cinco anos de Rússia numa única mala."

Ao lado da namorada e do cãozinho, ele pegou um ônibus para Tallinn, capital da Estônia, e agora está em Berlim, vivendo com amigos. Ao contrário dos demais brasileiros, Caixeta não se demitiu. A direção do Mariinsky concedeu uma licença para ele e todos os que estão deixando o corpo de baile por causa da guerra. É um esforço para evitar a perda de talentos e transtornos para a temporada. Segundo Caixeta, Tchebinika, sua parceira em cena, e todos os ucranianos do elenco tiraram licença.

Já Bossle, de 24 anos, viajou da Rússia até a Finlândia, de onde pegou um voo direto para Zurique, na Suíça. Em trânsito e se dizendo exausto, disse que a sua vida "virou de cabeça para baixo do dia para a noite". "Estou tentando assimilar tudo o que está acontecendo", afirmou. O desligamento do Stanislávski ocorreu depois de uma reunião convocada no fim do mês passado pelo diretor do corpo de baile, o francês Laurent Hilaire.

No encontro, Hilaire apresentou sua demissão, alegando que os valores de Putin não eram os mesmos dos seus —liberdade, igualdade e fraternidade. A maior parte dos estrangeiros seguiu o exemplo do diretor e deixou o país.

César Lima, de 64 anos, lamenta a situação de Bossle, para quem deu aulas em 2015, pouco antes de ele seguir viagem. "É como chegar ao topo do Everest e, de repente, ter que descer. Ele é extremamente trabalhador e tem a disciplina sacerdotal que o balé pede. Ele está em choque. Ontem no telefone, ele me disse ‘eu nem tive tempo de chorar’."

Motta, de 24 anos, que estava havia 12 anos no país, se demitiu do Bolshoi no início da semana em solidariedade aos amigos ucranianos. Ele anunciou a saída em uma nota no Instagram. "Eu não posso agir como se nada estivesse acontecendo. Não consigo acreditar que tudo isso está acontecendo de novo. Pensava que tínhamos superado isso e aprendido com o passado", diz a nota. O bailarino conseguiu deixar a Rússia e está em segurança.

A primeira frase da nota, porém, é sintomática. Os dirigentes das principais companhias de balé da Rússia fingem estar alheios à guerra, segundo contam os bailarinos. As temporadas nacionais do Mariinsky e do Bolshoi seguem conforme o previsto, iniciativa que incorpora a aparente tranquilidade das principais cidades de um país cada vez mais fechado pela censura.

Na Rússia, balé e política sempre estiveram de mãos dadas. Como escreve o historiador Simon Morrison no livro "Bolshoi Confidencial", a dança clássica, apesar de ser popular, sempre encontrou apoio em quem estivesse no poder —czares, revolucionários bolcheviques ou Stálin. Com Putin, não é diferente. É no teatro Bolshoi que o líder russo recebe os chefes de Estado que visitam a capital russa. Já em São Petersburgo, Putin tem um amigo no comando do Mariinsky. O diretor artístico Valeri Gergiev é seu fiel aliado.

"Não se trata de uma vitrine do país para o mundo. Eles têm consciência da superioridade do que fazem. Por isso, existe uma relação imediata com a política", afirma a professora de balé Rosalia Verlangieri, de 78 anos. "O balé é a joia da coroa."

Mantidos pelo governo, o Mariinsky e o Bolshoi, especificamente, são fundamentais para a identidade nacional, sendo responsáveis por boa parte da história da dança. Desde a Revolução Russa, quando o centro do poder migrou de São Petersburgo para Moscou, as duas instituições vivem numa rivalidade nem sempre discreta.

Se o Mariinsky ainda é tecnicamente superior, a fama internacional do Bolshoi é incomparável. Além dos desfalques para a temporada, os dois balés sofrem boicotes do mundo todo por causa da guerra na Ucrânia. Mas os prejuízos à companhia moscovita podem ser mais severos. No fim de fevereiro, a Royal Opera House, de Londres, cancelou a temporada do Bolshoi prevista para o verão. Já o Teatro Real de Madrid, na Espanha, anulou na sexta-feira passada as apresentações marcadas para maio.

Nos Estados Unidos, o Metropolitan Opera, de Nova York, anunciou que deve encerrar as colaborações com o Bolshoi, incluindo a montagem da ópera "Lohengrin", de Richard Wagner, na próxima temporada. Pressionado para declarar apoio à Ucrânia, o diretor musical do Bolshoi –e da Orquestra Nacional do Capitólio de Toulouse, na França–, o russo Tugan Sokhiev renunciou ao cargo no domingo passado.

"Se você quiser destruir o Bolshoi, vai ser muito difícil", diz Lima, o professor de dança. "Atacar o Bolshoi é atacar a Rússia." Afinal, nas ruas de Moscou uma velha lenda persiste, dizendo que o Kremlin decide os elencos de cada temporada. Entre os boicotes contra o Mariinsky houve a exclusão do Festival Castell Peralada, que acontecerá em julho, na Espanha. Gergiev está enfileirando, ele mesmo, sanções, sendo substituído no cargo de maestro em concertos na Filarmônica de Viena ou no Carnegie Hall, em Nova York.

Lima e Verlangieri, a professora, acreditam que o clima nas principais companhias de balé do mundo é de incerteza. Acuados, os russos estão sem acolhida em outros palcos da Europa. Já os estrangeiros tentam encontrar novos caminhos para as suas carreiras. De acordo com Verlangieri, a falta de turistas como plateia é preocupante, mas não deve prejudicar os teatros. "A situação está caótica, mas todos se mantiveram abertos mesmo nas grandes guerras", ela lembra.

Segundo ela, os desfalques devem prejudicar as companhias no curto prazo, mas, sendo o leste europeu um celeiro de talentos, logo devem se recuperar. Segundo César Lima, o prognóstico é um pouco mais positivo para os três solistas brasileiros. Ele conta que qualquer balé gostaria de ter um integrante dessas instituições em seu elenco.

Enquanto isso, Svetlana Zakharova, a estrela do Bolshoi, chorou ao ser aplaudida de pé numa apresentação no fim do mês passado. Zakhrarova bloqueou as redes sociais, após sofrer pressões —e ataques— pró e contra a incursão de Putin na Ucrânia.

De Berlim, Victor Caixeta diz, melancólico, que sentirá saudades de São Petersburgo, onde, afirma, é bem acolhido e reconhecido. "Por outro lado, acho que talvez nunca mais volte para lá."

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