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Reginaldo Prandi remete a memórias de Brasil movido a morte e fofoca em romance

'Motivos e Razões para Matar e Morrer', cápsula de um tempo anterior a Brasília, lista mortes no país dos anos 1950

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São Paulo

Eu não quero que aquele Brasil seja esquecido", afirma o sociólogo Reginaldo Prandi sobre o seu novo romance, "Motivos e Razões para Matar e Morrer".

Numa cidade de interior, na década de 1950, os amigos Mateus e Heitor saem do Cine Santa Clara após assistir a mais um capítulo da série "A Aranha Mortal". Os adolescentes se deparam então "com a maior novidade da cidade desde o dia em que um cavalo desembestado entrou na igreja na hora da missa e atropelou meia dúzia de devotas".

O escritor e sociólogo Reginaldo Prandi, em sua casa na Vila Mariana - Zanone Fraissat/Folhapress

Assassinaram Izildinha a facadas. O delegado-substituto Bel tenta manter intacta a cena do crime, "ameaçada de invasão pela curiosidade popular". De nada adianta. O leitor, que caminha com Mateus das primeiras páginas até as últimas, se sente em plena muvuca, ouvindo a gritaria.

Quem morreu? Izildinha, que interpretava a santa Verônica na procissão. "Gente, mataram uma santa!" Não, não. "Que santa o quê." Cuidado, a igreja ensina que não se fala mal de morto? "Mas a mulher era uma galinha".

Logo neste início é apresentado o motor do romance —a fofoca, bem costurada na narrativa pela oscilação entre a voz do narrador e as das personagens, cujas biografias se misturam com a saga do lugar. "O grande sujeito da história é a cidade", afirma Prandi.

Na pequena cidade sem nome, a verdade é horizonte, sempre se afastando, mesmo quando parece que podemos chegar a ela. Para cada personagem, cada acontecimento, o que se tem são muitas versões, que dependem de quem dá o ponto no conto. Dona Nena, vizinha de Mateus, todas as manhãs põe sua cadeira na calçada e é quem melhor faz a colcha de retalhos do possível.

"A história toda se passa na década de 1950. Não há nenhuma palavra que tenha sido criada depois. O linguajar, as gírias, as músicas, os filmes, tudo que é citado está rigorosamente nesses anos, inclusive o jeito do narrador e dos personagens falarem", diz Prandi.

Se a fofoca é o motor do romance, a morte é seu combustível. São 12 no total. Muitas violentas, todas trágicas. Muitas misteriosas, outras nem tanto.

Alguns leitores podem achar o romance um tanto pesado pelo fato de que não se furta a narrar a dor do luto. Ou o choque diante da violência. Há episódios francamente devastadores, como o suicídio de Yoko, que sente ter desonrado sua família —"a única família de japoneses da cidade"— quando se apaixona por um rapaz brasileiro.

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O escritor e sociólogo, Reginaldo Prandi, em sua casa na Vila Mariana - Zanone Fraissat/Folhapress

Há, contudo, outra forma de descrever o livro —ele é divertido. Há cenas francamente engraçadas, como a tal Festa da Luz, quando a cidade será finalmente ligada à rede elétrica nacional. E, ainda por cima, "para coroar os novos tempos, teremos em breve a inauguração de Brasília, a nova capital federal, a mais moderna cidade do mundo". "À noite, pela televisão, vamos vigiar tudo o que se passa em Brasília", celebra o prefeito.

Dá tudo errado, é claro. E a cidade passa semanas no escuro depois de exagerar na água benta na hora de abençoar a chave de ligação.

A expectativa por Brasília é só uma das "chaves de mudança", como diz Prandi, no romance. Há muitas outras. Como o avião Caravelle, da Varig. Ou o disco "Chega de Saudade", lançado em 1959 por João Gilberto, que Mateus ganha no concurso da rádio. "Vai ver que era o futuro chegando e ninguém tinha se dado conta", pensa o garoto. O futuro era a bossa nova.

Por fim, é preciso destacar como, sem qualquer anacronismo, o livro trabalha questões que permanecem até hoje —racismo, questões de gênero, machismo, homofobia. E até bullying. "Esses conceitos não faziam parte da língua comum do dia a dia. Por isso, essas palavras não são usadas. Claro que existia preconceito racial, mas não se falava de racismo. O livro é baseado também nessas mentiras sociais da época", afirma Prandi.

Caso de Felipe, garoto da idade de Mateus. Felipe é gay, todos sabem, sem dizer. Ninguém aprova. Mas é cercado de hipocrisia. E, pela hipocrisia, "quem paga o pato é gente como o Felipe", diz Mateus.
"Motivos e Razões" não é uma autobiografia, não é um livro de memórias. É, sim, "um livro de lembranças", define Prandi. É a lembrança coletiva de um Brasil que existiu.

Motivos e Razões para Matar e Morrer

  • Preço R$ 74,90 (336 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Reginaldo Prandi
  • Editora Companhia das Letras
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