Descrição de chapéu The New York Times

Rosalía, com novo disco 'Motomami', quer ser sexy, de vanguarda e absurda

Aos 29, cantora espanhola faz salada com reggaeton e jazz, flamenco e Auto-Tune em busca de sons inéditos

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Joe Coscarelli
Los Angeles | The New York Times

Rosalía, um fenômeno experimental da música pop espanhola famosa pela velocidade ultrarrápida de sua reinvenção, muitas vezes se apanha resolvendo problemas musicais complicados que ela mesma cria. Por exemplo, como combinar o reggaeton e o jazz? Ou o flamenco e o Auto-Tune?

O que ela precisa fazer para conseguir encaixar baterias digitais aceleradas, programadas por Tayhana, um produtor argentino radicado na Cidade do México, em uma canção melancólica criada para se parecer com "Wuthering Heights", de Kate Bush? Ou para distorcer um tradicional bolero cubano usando um sample digital obscuro de Soulja Boy?

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A cantora pop espanhola pop Rosalía em Los Angeles - Carlos Jaramillo - 27.fev.2022/The New York Times

"Parece brincadeira, não é?", disse Rosalía recentemente sobre suas propostas, que no passado costumavam ser abstratas, durante uma conversa no estúdio de North Hollywood em que ela gravou boa parte de seu novo disco, "Motomami", que inclui tudo que foi descrito até aqui.

A esta altura, depois de lançar três álbuns numa carreira construída sobre colisões culturais como essas, ela está acostumada a ser encarada por seus colaboradores com certa confusão.

Mas Rosalía, de 29 anos, não é o tipo de pessoa que se dispõe a dedicar um tempo infinito a experiências criativas, confiante em que algo de novo terminará por se revelar. Em lugar disso, ela tende a trabalhar com base em sonhos lúcidos, concretos, e imagina em detalhe um produto final que combina o maior número possível de suas pedras de toque artísticas, mas mesmo assim se mantém fiel a ela mesma e original o bastante para transcender uma simples homenagem.

"Amo todos os estilos", ela disse, uma generalização que em seu caso parece ser até modesta. "Para mim, todos estão no mesmo nível." Ou, para expressar a ideia de outra maneira, "o contexto é tudo" —influências primárias reanimadas por um ponto de vista pessoal. "Eu só quero ouvir alguma coisa que nunca tenha ouvido. Essa é sempre a minha intenção."

Mesmo quando Rosalía não está literalmente usando um sample —ou um sample de um sample, como em sua nova canção, "Candy", construída sobre um trecho de uma faixa de Ray J alterado por Burial—, ela toma elementos emprestados. "Foi sempre assim. Quando nós, humanos, criamos, nós usamos samples", ela disse. "De ideias vêm outras ideias. Quando vejo que Francis Bacon fez um quadro baseado em Velázquez, em minha opinião isso é sampling."

"Desde que você o faça com respeito —e com amor—, creio que agir assim sempre tem sentido", ela acrescentou.

A amplitude da ambição criativa tornou Rosalía uma das artistas jovens mais vistas, cultuadas, esquadrinhadas, copiadas e respeitadas de todo o planeta, ainda que ela jamais tenha emplacado uma canção no Top 40 das paradas de sucesso dos Estados Unidos.

Suas músicas foram ouvidas bilhões de vezes no YouTube e Spotify, e incluem colaborações com The Weeknd, Travis Scott e Billie Eilish. Ela conviveu com a família Kardashian-Jenner, apareceu num filme de Pedro Almodóvar e no vídeo de Cardi B para "WAP" e foi retratada em revistas de moda de diversos continentes.

No período de preparação para "Motomami", Rosalía fez uma entrevista no programa de Jimmy Fallon – ensinando o apresentador como pronunciar o "R" de seu nome —e também uma apresentação no "Saturday Night Live", em que cantou sozinha e em espanhol.

"Em última análise, o impacto cultural dela é muito maior que o cumulativo de seus ‘streams’", disse Rebecca León, a empresária de Rosalía. "Vejo meninas que literalmente a copiam. E não só meninas do mundo latino —em toda parte."

O álbum anterior da cantora, "El Mal Querer", chegou pronto ao mercado em 2018 e apresentou Rosalía como uma vanguardista confiante, que atualizou a música flamenca que estudou em sua adolescência na Catalunha para a era digital globalizada. ("Los Angeles", seu disco de estreia, em 2017, era uma coleção mais tradicional de canções flamencas, ainda que a última faixa fosse uma cover de "I See a Darkness", de Bonnie "Prince" Billy.)

Mas a sagração de Rosalía como um ícone pop válido para todo o planeta, ao modo de Beyoncé ou Rihanna —e mais a explosão comercial, em todos os mercados mundiais, de estilos de música que desafiam gêneros e são cantados em espanhol—, significou que "Motomami" já estava sendo dissecado antes mesmo de existir.

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A cantora pop espanhola Rosalía em Los Angeles - Carlos Jaramillo - 27.fev.2022/The New York Times

Uma coluna publicada neste ano pelo jornal espanhol El País mencionava preocupações quanto à possibilidade de que Rosalía tivesse "dado uma de Miley Cyrus", passando de alusões líricas a Federico García Lorca a rimas simplistas e maliciosas, acompanhadas pela presença excessiva nas redes sociais.

A verdade é que Rosalía quer tudo —ser erudita e de vanguarda, sexy, tola e absurda. Numa conversa intensa mas pontuada por risadas, em espanhol, ela se referiu a "el inconsciente colectivo" de Carl Jung e à sua obsessão pelo TikTok; em suas letras, ela declara fidelidade a Niña Pastori, José Mercé e Willie Colón, mas também a Tego Calderón, Lil’ Kim e MIA.

Em "Saoko", a faixa de abertura de "Motomami", um tributo a Daddy Yankee e Wisin, pioneiros do reggaeton, a cantora se refere diretamente aos seus objetivos e ao seu apego às colagens e metamorfoses. "Yo me transformo", ela rosna. "Eu me contradigo", ela acrescenta em espanhol. "Sou todas as coisas." E, mais adiante, ela recorre ao rap. "Acho que eu sou Dapper Dan", hoje estilista famoso mas no passado conhecido por remixar gravações piratas.

Embora Rosalía tenha lançado o equivalente a um novo álbum, em forma de uma sucessão de singles nos quatro anos transcorridos desde "El Mal Querer", ela planejou "Motomami" minuciosamente como uma obra completa, com uma paleta característica –sem violões (por mais dominantes que eles tenham sido em sua música anteriormente), com baterias "muito agressivas" e grande presença de teclados, mas só um mínimo de harmonias vocais. Ironia e humor foram novos acréscimos ao seu arsenal temático, com o lado sexual e a pose ganhando força.

"Quase frenético", ela disse sobre sua visão —uma montanha russa que sobe e desce os picos do amor, da fama e da família, especialmente durante o isolamento da pandemia. "A sensação é exatamente essa o tempo todo, a de estar nesse contexto, fazendo esse trabalho."

E é trabalho. Como principal cantora, compositora, artista em cena e diretora de arte de seu projeto, Rosalía a um só tempo participa de uma ampla colaboração e é uma autora que cuida de cada detalhezinho de seu disco.

"Não importa o quanto uma contribuição para uma canção tenha sido pequena, ela vai estar nos créditos. Eu sou confiante a esse ponto, em minha vida como musicista", ela disse. "Mas sei que isso prejudica o destaque que eu poderia receber como produtora. Porque, no momento em que as pessoas veem homens e uma mulher em uma lista, você sabe o que elas vão presumir."

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A cantora pop espanhola Rosalía em Los Angeles - Carlos Jaramillo - 27.fev.2022/The New York Times

"Vi o que acontece com Björk. Vi outras mulheres passarem por isso. Mas o tempo que eu dediquei ao disco —foram meses trabalhando 16 horas por dia— é uma loucura", ela afirmou.

Ela expressou desdém ante a audácia daquele que duvidam das "forças criativas femininas".

"Como? É que? Isso? Ainda? Acontece?"

Mas sua convicção quanto aos frutos de seu trabalho —seu conhecimento de que não existe uma máquina oportunista, nenhum manipulador controlando as coisas dos bastidores— significa que ela continuará a absorver os golpes e os elogios que derivam de estar no comando e que tentará continuar se mantendo na vanguarda.

"Eu queria que fosse mais fácil para mim, que eu pudesse só chegar ao estúdio, cantar um pouquinho e ir embora", disse Rosalía. "Mas o tempo dirá."

Ela voltou a adotar uma expressão combativa, demonstrando ainda mais autoconfiança. "O tempo dirá."

Tradução de Paulo Migliacci

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