Descrição de chapéu

Angeli fez uma revolução nacional na revista Chiclete com Banana

Cartunista descobriu modalidade paulistana do humor ao testar os limites do fim da ditadura com críticas e tipos do momento

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

André Boucinhas

Roteirista e historiador, colaborou com obras da Globo e do Porta dos Fundos

"Não vamos encher seu saco narrando as desventuras do desenhista nacional contra um bando de patos afeminados e não assumidos, pois você não comprou esta revista –ou seria um gibi?– para ouvir lamúrias, e nem vamos derrubar o governo da Cisjordânia, se é que lá tem governo. Queremos com esse gibi –ou seria revista?– apenas beliscar a bunda do ser humano pra ver se a besta acorda."

Assim Angeli abria o primeiro número da Chiclete com Banana, em 1985, apontando os princípios da revista que representou uma nova etapa do humor brasileiro.

Nela Angeli acertou em cheio nas críticas à geração anterior, ridicularizando os hippies (Wood & Stock, dois tiozões nostálgicos), gurus exotéricos (o charlatão Rhala Rikota) e eternos revolucionários (o militante de botequim Meiaoito), mas também mirou em tipos daquele momento, como a mulher independente (Rê Bordosa) e os punks (Bob Cuspe). Isso sem falar nos personagens de outros cartunistas que ganharam vida por lá, como os Piratas do Tietê, de Laerte.

Os cartunistas Laerte e Angeli no apartamento de Angeli em Higienópolis
Os cartunistas Laerte e Angeli no apartamento de Angeli em Higienópolis - Eduardo Knapp/Folhapress

Segundo Angeli, no início dos anos 1980 "você tinha que fazer uma charge de esquerda. Não podia relaxar um pouquinho e fazer um sobre o cabelo da dondoca. [...] Não tinha nenhuma revista de humor que não fosse influenciada pelo Pasquim ou tentasse fazer um novo Pasquim".

A alternativa apareceu para ele quando viu "Trate-me Leão", peça do grupo teatral carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone que levou para o palco o cotidiano do jovem de classe média : "Os caras estavam realmente discutindo problemas que os jovens viviam sem preconceito e sem caricatura. Quando vi aquilo, lembrei dos meus personagens que ficavam na gaveta, que não publicava, e falei esse é o caminho!"

Foi assim que Angeli, responsável por uma página inteira no Pasquim, decidiu lançar sua própria revista, que não esperava durar mais do que dois ou três números. Não podia estar mais enganado, pois rapidamente alcançou tiragens de mais de 100 mil exemplares, abrindo um novo filão editorial.

Seus trabalhos revelavam algo original, calcado principalmente no humor de personagem e descolados da política no sentido estrito. Essa postura não vinha da sua personalidade, já que se interessava por política, mas por intuir que aquele tipo de cartum havia se esgotado e que era hora de tentar algo diferente.

Angeli mudou inclusive o seu traço, que até então remetia à geração do Pasquim. Diferentemente de Millôr, Jaguar, Henfil e cia, ele não economizava na composição das cenas, detalhando cenários, roupas e adereços. Nos seus desenhos, o conteúdo era tão importante quanto à forma, enquanto o traço aparentemente simples e às vezes até mesmo sujo da geração anterior parecia reforçar a centralidade da mensagem.

Os temas da revista voltavam-se para questões de comportamento jovem, incluindo sexo, drogas, solidão. "O rock, o pai, a mãe, a irmã, nada resistia às flechas desse pessoal. Nada era sagrado, muito menos a Igreja. Era um momento de ebulição raro", como definiu Ivan Finotti, jornalista cultural.

O humor estava repleto de agressividade, tanto no texto (palavrões, ofensas) como no enredo (brigas violentas, pedofilia, drogas, invasões). Essa mescla de comédia e violência condensava bem a sociedade brasileira dos anos 1980 que, por um lado, viu o fim da censura, a volta das eleições para governador, a Anistia; por outro, a derrota da proposta de eleição direta para presidente, a morte de Tancredo Neves, a subida vertiginosa da inflação, o desemprego, o caos urbano.

Enquanto a cena carioca parecia focar no lado festivo –o humor ali era mais rasgado e inconsequente, vide o Planeta Diário e o teatro Besteirol–, os paulistas captaram melhor essa ambiguidade, não só nas tiras como também na música, com o punk.

Angeli havia se proposto testar os limites daquele fim de ditadura, mas no caminho descobriu um tipo de humor paulistano. Como diz o chavão, ao desenvolver um estilo próprio, com raízes bem definidas, acertou algo muito maior: redefiniu a cultura da sua geração. E, num momento como o que vivemos, em que tudo parece se politizar novamente, seus desenhos e sua visão de mundo vão fazer muita falta.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.