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Bienal de Veneza decreta a morte da femme fatale com mulheres radicais

Retrato delas feito por elas põe seios e vaginas como força motriz em primeiro plano e sepultam objetificação pelos outros

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Detalhe de obra de Louise Bonnet exposta na 59ª Bienal de Veneza Roberto Marossi/Bienal de Veneza

É a morte da femme fatale. As mulheres nesta Bienal de Veneza, retratadas por mulheres em sua maioria, sepultam a ideia do feminino como alvo do olhar lascivo dos outros. Elas são feras, às vezes corpos desmembrados, seios e vaginas estilizados em primeiríssimo plano, potências destrutivas e regeneradoras, violentas e radicais de um jeito que até desmonta a neutralidade blockbuster que sempre ronda as mostras dessa natureza.

Virgem e puta, a mulher retratada numa das telas da chilena Cecilia Vicuña é uma figura cindida ao meio, mas seu lado santa é o menos interessante. Outra, num quadro da argentina Leonor Fini, se cobre com um lençol de cetim enquanto devora com os olhos um belo rapaz nu ao seu lado.

O plot twist, por estranho que pareça ver novidade nessas imagens, é que essas não são obras atuais. Vicuña, que ocupa uma sala inteira nos Giardini com uma instalação feita agora em Veneza e ainda venceu o Leão de Ouro pelo conjunto de sua obra, fez sua mulher de duas caras há quase cinco décadas. O trabalho de Fini data da Segunda Guerra.

Instalação de Cecilia Vicuña na 59ª Bienal de Veneza, com sua tela 'Virgem e Puta' ao fundo, a primeira da esquerda para a direita na parede da direita - Marco Cappelletti/Bienal de Veneza

Trazer à luz essas pinturas em contraponto a obras forjadas agora, no auge do ativismo das políticas identitárias, é o motor de estranha potência da mostra que acaba de entrar em cartaz, organizada pela italiana Cecilia Alemani.

Quando, antes da pandemia e da guerra na Ucrânia, foram anunciados os planos de uma exposição inspirada na obra de mulheres surrealistas do início do século passado, com a britânica Leonora Carrington à frente de todas elas, a ideia parecia datada e até mesmo escapista, mas o fato de vivermos na mais surreal das realidades neste momento fez o recorte de Alemani soar atualíssimo —e necessário, não seria exagero dizer.

Há muitos nomes soterrados pelo machismo no passado que agora vêm à tona e uma leva de artistas incandescentes que prometem rearranjar o terreno plástico. A costura calculada entre os dois momentos, aliás, é o que aumenta a voltagem da mostra.

Um exemplo é o choque orquestrado entre as esculturas da romena Andra Ursuta, peças de cristal que ela molda a partir de seu corpo e funde com elementos fantásticos, e os painéis de tecido com pegada construtivista da alemã Rosemarie Trockel. Os contornos escorregadios e lisos da primeira ressaltam a volúpia tátil das obras mais antigas da segunda, numa troca entre as formas e gerações.

Ecos das joias reunidas na ala histórica da mostra, aliás, com peças de Carrington, da espanhola Remedios Varo, da italiana Carol Rama, da francesa Claude Cahun e da alemã Meret Oppenheim, são sentidos o tempo todo na mostra, num gesto de revelar o que a retaguarda por trás das mulheres de hoje já vislumbrava numa era muito mais difícil para as mulheres em geral e sem o luxo das técnicas atuais de impressões 3D, cortes a laser, filmagem com drones.

É como se as visões fantásticas então presas no plano da pintura, do desenho ou no máximo em performances registradas em fotografias enfim pudesse se realizar em toda a sua escandalosa plenitude.

Esculturas de Andra Ursuta, em primeiro plano, e painéis de Rosemarie Trockel, atrás, na 59ª Bienal de Veneza - Marco Cappelletti/Bienal de Veneza

O poder de choque, no caso, parece orientar a visão dessas artistas, que se arriscam em termos de escala e visões escatológicas, apocalípticas. A colombiana Delcy Morelos, num dos momentos mais fortes da mostra, encheu de terra um dos galpões do Arsenale, um platô negro que envolve as colunas do espaço e contrasta com as telas coloridas do brasileiro Jaider Esbell.

Vísceras sintéticas se agitam suspensas em andaimes do chão ao teto num banho de sangue criado pela sul-coreana Mire Lee. A brasileira Solange Pessoa domina todo um jardim com suas esculturas. As telas de tecido translúcido e peças de vidro e areia da canadense Kapwani Kiwanga, uma reflexão sobre a destruição causada pela indústria mineradora, ocupa outro galpão inteiro.

A suíça Louise Bonnet fez um mural com três telas que mostram uma mulher que solta jatos de leite dos seios e outra que inunda a composição com um banho de urina. Barbara Kruger transformou em imensos outdoors e letreiros luminosos uma versão subversiva do hino à bandeira de seu país, os Estados Unidos.

Outra americana, Simone Leigh, que venceu o Leão de Ouro por suas obras na mostra principal e ocupou o pavilhão dos Estados Unidos, criou as esculturas gigantes de bronze, bustos femininos lembrando a estrutura de uma casa ou abrigo, que abrem e fecham as alas do Arsenale.

Na saída dessa parte da mostra, a italiana Giulia Cenci ainda pendurou esculturas de carcaças de animais e restos humanos do alto de um corredor, enquanto, na entrada dos Giardini, a alemã Katharina Fritsch mostra a estátua hiper-realista de um elefante do tamanho do bicho real.

Materiais sintéticos, aliás, como o poliéster do paquiderme de Fritsch, estão em alta. Os trabalhos monumentais da espanhola Teresa Solar, que inventou supostas máquinas de escavar túneis com cara de fósseis, e da francesa Marguerite Humeau, com estruturas que lembram ovos e pérolas equilibrados sobre corais, são construídos com resina e plástico, num prelúdio à ala de ciborgues da mostra.

As esculturas 'El Niño' e 'Kuroshio', da artista francesa Marguerite Humeau, na 59ª Bienal de Veneza - Vincenzo Pinto/AFP

O corpo protético, fusão de homem e máquina, é um dos assuntos-fetiche em Veneza. Se a narrativa criada por Alemani começa com uma celebração da fertilidade da mulher, como a supergrávida colorida da francesa Niki de Saint Phalle e as mulheres que dão vida a flores da brasileira Rosana Paulino, tudo termina com a extinção dos humanos e o reinado das máquinas.

É nesse ponto que impressionam as obras do americano Tishan Su, que criou assustadoras mesas de cirurgia em que replicantes parecem emergir do plástico diante de vultos de carne e osso que agonizam, e da sul-coreana Geumhyung Jeong, que montou uma linha de montagem em que partes do corpo humano são fundidas a engrenagens e peças metálicas —uma nova anatomia artificial para os tempos atuais.

Detalhe de instalação de Mire Lee, com esqueletos e vísceras mecânicos, na 59ª Bienal de Veneza - Roberto Marossi/Bienal de Veneza

O fim dos fins não chega a ser novidade na arte contemporânea. Há quatro anos, as bienais de Lyon e Istambul formaram um panorama do apocalipse, a primeira com o mesmo pendor tétrico de homens triturados por máquinas e a segunda dissecando a crise climática, com alguns dos mesmos artistas agora em Veneza. A última Bienal de São Paulo mostrou os restos de um mundo carbonizado, mas via luz no fim do túnel.

Na visão atual de Cecilia Alemani, no entanto, essa luz está ausente. Se a mostra é uma belíssima celebração de mulheres pioneiras ancorada em sólida pesquisa histórica, seu ponto de força maior, a sensação que deixa no final é que beiramos a extinção como espécie e talvez até mesmo a arte deixe de ser coisa humana para sair de algoritmos na era do metaverso e dos NFTs.

O trabalho da americana Louise Lawler, que coroa o pavilhão principal nos Giardini, ilustra bem isso. São fotografias de uma mostra recente do minimalista Donald Judd no Museu de Arte Moderna de Nova York com as luzes apagadas, a penumbra das galerias fechadas e só vestígios das suas formas geométricas. Fim.

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