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Ciência e literatura andam de mãos dadas pela história, mostram novos livros

'Quando Deixamos de Entender o Mundo' romanceia cientistas, e 'As Vinte Mil Léguas' realça o literário em Darwin

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Obra

'Noturno (Pontes)', obra de 2019 da artista plástica Sandra Cinto Albano Afonso/Divulgação

São Paulo

"Se apenas um cisco de pó contém bilhões de átomos, como se podia falar com sentido de algo tão pequeno?", perguntou o cientista dinamarquês Niels Bohr ao alemão Werner Heisenberg enquanto os dois escalavam uma montanha. O físico não devia descobrir fatos, segundo ele, mas se esforçar em criar metáforas e conexões mentais. Como um poeta.

A cena, presente em "Quando Deixamos de Entender o Mundo", do chileno Benjamín Labatut, encapsula algo que parece ser o esforço central do livro: mostrar que ciência e literatura, na verdade, não são coisas apartadas.

"Se a ciência estuda a velocidade da luz, a literatura se preocupa com a velocidade da sombra, mas ambas são formas de o ser humano dar sentido a sua experiência", descreve o autor em entrevista. "O que elas compartilham é uma liberdade luciferina: nem a ciência nem a literatura reconhecem limites."

Finalista do International Booker Prize e tido como um dos melhores do ano pelo jornal The New York Times, o livro de Labatut cria cinco narrativas, híbridas de ensaios e contos, protagonizadas por cientistas pintados como gênios que expandiram o conhecimento humano. E o tempo todo destaca o que há de trágico nisso.

"O mundo está condenado a uma existência que padece de uma dualidade inevitável e dolorosa", afirma o autor de um livro tomado pela vertigem da catástrofe. "A matéria e a antimatéria, o prazer e a dor, a vida e a morte surgem juntas e se sustentam."

A primeira história já explica, com uma paulada metafísica, o que ele quer dizer. Conta do químico alemão Fritz Haber, responsável por criar o gás Zyklon B, arma que exterminou batalhões inteiros de soldados na Primeira Guerra Mundial e, depois, multidões de inocentes em campos de concentração nazistas.

Se não fosse ironia suficiente o fato de Haber ser judeu, ele também foi o primeiro a conseguir extrair nitrogênio do ar, permitindo o cultivo de plantas sem recorrer a fertilizantes. O processo é tido como peça fundamental da explosão demográfica que veio a seguir, já que a disponibilidade de comida aumentou brutalmente.

O Haber descrito por Labatut, em páginas de concisão admirável, é um arauto tanto da morte quanto da vida. O que revela o progresso científico como uma área cinzenta, que serve para chacoalhar certezas e moralidades.

De fato, o professor Pedro Paulo Pimenta, que pesquisa história da filosofia na Universidade de São Paulo, afirma que "a essência da descoberta científica é abrir um novo campo do desconhecido". "É a subversão das verdades que existiam antes. E as que você põe no lugar são apenas provisórias."

Labatut também reforça que a ciência "tem a dúvida cravada no coração". "Não é preciso acreditar nela, apenas conhecê-la. É um caminho muito particular, que pede que você creia em algo se houver evidência e consenso, mas amanhã você deve estar disposto a abandonar essa verdade se nosso olhar ficar mais agudo."

Não é exagero dizer que há algo de artístico no fazer científico, o que se realça na escrita do chileno. Bohr descreve o trabalho de Heisenberg como "a obra de um místico"; um discípulo afirma que o matemático Alexander Grothendieck "tinha uma sensibilidade extraordinária para a harmonia das coisas"; as inspirações dos cientistas não raro remetem ao transe, ao bizarro e até ao divino.

Pimenta lembra que antigamente, durante o Renascimento italiano por exemplo, a figura do artista e a do cientista eram indissociáveis. "Leonardo da Vinci e Michelangelo eram artistas plásticos, mas também astrônomos, matemáticos, fisiologistas. A arte consumava algum tipo de verdade a respeito do mundo."

Nos períodos posteriores, as funções foram se divorciando, com um reencontro durante o Iluminismo, quando a ciência deixa de ser escrita em latim e vai para os idiomas correntes, de modo a ser acessível a um público mais amplo que os especialistas.

"Os naturalistas, físicos e químicos se tornam também escritores, pela exigência de formular a ciência em uma língua que todo mundo conhece", aponta. "Para democratizar o conhecimento, a pessoa tem que ficar interessada pelo que você está falando, pelo prazer da compreensão. Os tratados de história natural se tornam então exercícios para a imaginação."

É algo que conversa com outro lançamento recente, "As Vinte Mil Léguas de Charles Darwin", uma adaptação feita por Leda Cartum e Sofia Nestrovski de seu podcast homônimo, produzido por uma parceria da Quatro Cinco Um com a Megafauna. A meta das autoras, que têm mestrado em letras, é ler os escritos de Darwin como literatura.

"Uma característica em comum entre o cientista e o escritor é olhar para o mundo com muita curiosidade e interesse legítimo", diz Cartum. "Darwin está interessado em desvendar o mistério dos mistérios, como ele coloca, e é isso que artistas também querem e sabem que não vão conseguir."

"Ler cientistas como autores é também ler as influências sobre sua escrita, escutar outras vozes dentro de uma voz individual, um aprendizado que vem da nossa formação em literatura", afirma Nestrovski, que ressalta a "criatividade infinita" do pai da teoria da evolução, evidente na multiplicidade de seus experimentos —e algo encontrado também em grandes artistas.

É significativo que literatura tão imbuída do pensamento científico surja num momento em que o obscurantismo viceja como uma praga. Como ressalta Labatut, "a ignorância sempre favoreceu ao poder, e a ciência sempre foi do interesse de poucos".

"As pessoas se sentem orgulhosas de questionar o saber dos especialistas, e está bem, mas o problema é que não reconhecem seus próprios limites", afirma. "Não basta questionar tudo e se orgulhar de ser contracorrente. É preciso construir cuidadosamente um sentido do mundo mais amplo, fino e humano. E isso requer humildade e sutileza, requer saber o quanto você sabe e ter sempre um pé na incerteza."

Leda Cartum conta que já soube de criacionistas que ouviram a vida de Darwin no podcast "Vinte Mil Léguas" e gostaram. A boa narrativa desarma, aponta a autora, que finaliza citando o israelense Amós Oz. "O remédio para curar o fanático é contar histórias."

Quando Deixamos de Entender o Mundo

  • Preço R$ 59,90 (176 págs.); R$ 38,90 (ebook)
  • Autoria Benjamín Labatut
  • Editora Todavia
  • Tradução Paloma Vidal

As Vinte Mil Léguas de Charles Darwin

  • Preço R$ 69,90 (320 págs.)
  • Autoria Leda Cartum e Sofia Nestrovski
  • Editora Fósforo e Sesc Edições
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