Descrição de chapéu
Livros

'Clara da Luz do Mar' acerta ao destrinchar questões morais do Haiti

Com idas e vindas no tempo, obra de Edwidge Danticat fala de momentos que precedem e sucedem a diáspora de haitianos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Clara da Luz do Mar

  • Preço R$ 62,90 (224 págs); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Edwidge Danticat
  • Editora Todavia
  • Tradutora Ana Ban

Claire Limyè Lanmè perdeu a mãe durante o parto. Desde então, seu pai, que nunca se sentiu seguro com tal título, se corroía com a ideia de deixar a garota com uma nova família para que tivesse uma criação mais digna enquanto ele buscava uma vida melhor no exterior.

Assim, aos sete anos de idade, a menina é relegada ao lar da vendedora de tecidos Gaëlle, a qual perdera, anos antes, sua própria filha num acidente automotivo. Tais histórias se entrecruzam com o núcleo familiar de Max Pai e Max Filho, donos de uma bem-sucedida rede de escolas particular em Ville Rose, no Haiti.

Tal como o filme "Moonlight" foca sua narrativa no antes e no depois de seus principais conflitos, o livro da internacionalmente premiada autora haitiana Edwidge Danticat destrincha os momentos que precedem e sucedem a diáspora de haitianos.

Seus protagonistas sentem-se aflitos pela ascensão da violência urbana tanto quanto pela inércia dos debates sobre gênero e sexualidade que tanto lhes afetam intimamente; logo, a vida no exterior parece ser uma opção a ser considerada, mesmo que, como pondera Gaëlle, pertencer à diáspora possa significar "o risco de morrer e ser enterrada num lugar frio".

Autora Edwidge Danticat - no facebook @Edwidge Danticat

Sendo ela própria uma haitiana residente dos Estados Unidos, a autora é bem-sucedida em destrinchar os conflitos morais, éticos e filosóficos que afetam os personagens em contraposição ao apego à terra natal. Mesmo quem nasce fora do Haiti, como é o caso de Jessamine, uma jovem estadunidense filha de haitianos, preserva as línguas (francês e criolo) e as tradições do país.

O texto navega de forma não cronológica pelas perspectivas dos personagens sem necessariamente apelar para a primeira pessoa, numa técnica narrativa similar a uma câmera sobre o ombro do protagonista. Assim, a linguagem se adapta a quem está sendo narrado.

O mundo sob a ótica de Claire é vivo, rico em cores, novidades e detalhes que, para qualquer adulto, seriam considerados prosaicos. Enquanto, quando acompanhamos seu pai, percebemos uma realidade acinzentada, com riqueza de detalhes mais presente nas memórias de sua esposa ainda em vida. Isso gera um efeito interessante de notarmos o Haiti sob óticas plurais, percebendo beleza onde uns veem miséria e miséria onde uns veem beleza.

As descrições de Edwidge merecem também um destaque especial quando o assunto é o corpo negro. A autora vai além do comum na literatura negra e distingue traços e tons de pele (mesmo entre pretos retintos) com palavras únicas a cada personagem, trazendo-nos uma visão tão rica do preto quanto os autores brancos fazem com seus similares.

A maior deficiência do livro, contudo, se dá na narrativa em si. Embora seja um texto simples de acompanhar, mesmo com as constantes idas e vindas no tempo, ele não parece fluir bem o suficiente para prender o leitor.

Pela pouca quantidade de páginas, poderia-se supor ser uma literatura passível de ser consumida em duas, três sentadas. Mas, o que se encontra é uma história pouco movimentada, com perfis psicológicos muito bem definidos para os personagens, mas com poucos acontecimentos levando-os a diante.

De certa forma, isso serve à proposta reflexiva da obra, mas, ainda assim, afeta o potencial dramático da história, que narra situações densas e emocionalmente pesadas, mas mal aproveitadas. Não é dizer que o texto não conta uma história, mas, sim, que este se assemelha mais a uma nuvem estática, daquelas que parecem não se mover durante o dia, do que o céu dinâmico das boas narrativas.

Pode-se dizer que é uma boa obra para quem busca compreender as questões que atravessam o cotidiano de haitianos, cuja realidade, em inúmeros trechos, mostra-se similar à de muitos brasileiros, seja pelas contradições de uma burguesia confusa quanto a seu papel na sociedade, seja pela forma como violência e corrupção parecem querer atrair e corroer a vida de jovens negros.

Todavia, não se trata de um livro engajante para leitores em busca de algo tocante e envolvente. A autora detém, nitidamente, um texto maduro, capaz de fugir das conclusões simplórias típicas de narrativas de estreantes entusiasmados pela ânsia de denunciar as agruras sociais. Ainda assim, falta movimento e ação à história. Quem sabe com mais tempero a vida de Claire não tivesse soado tão tocante quanto se propõe ser?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.