Conheça a Bala Desejo, banda com jeito setentista que nasceu da quarentena

Grupo germinou de comunidade de amigos que se mudou para apartamento em Copacabana para passar a pandemia

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Rio de Janeiro

No quintal de um estúdio, descendo um caminho na ribanceira de São Conrado, o músico Lucas Nunes aponta acerolas maduras e carambolas verdes. O mar aparece discreto entre as folhagens. Ele aguarda seus parceiros da banda Bala Desejo, cujo disco "Sim Sim Sim", lançado pela Coala Records, despontou como um fruto promissor do último verão e originou shows lotados no Rio e São Paulo. "Vamos conversar igual a como estávamos falando ali nas árvores", pede Nunes, de 26 anos.

Dora Morelenbaum, 26, Zé Ibarra e Julia Mestre, 25, estão enfim na varanda para a primeira entrevista presencial do grupo. Os quatro membros do Bala Desejo têm laços de amizade iniciados nos tempos do colégio, no Rio. De uma geração de 20 anos, imersos na cena cultural carioca, eles são profundamente geracionais na definição de seus planos artísticos.

jovens
Os integrantes da banda Bala Desejo Julia Mestre, Lucas Nunes, Dora Morelenbaum e Zé Ibarra - Lucas Vaz/Divulgação

"A kombi do Bala está de porta aberta", afirma Nunes, disposto a incorporar mais colegas a um projeto musical coletivo. "O mais bonito do disco é ver a galera querendo dar a mão e juntar a nossa geração para fazer arte de maneiras diferentes, mas se afunilando no mesmo lugar, que é a responsabilidade artística de cada um. Eu sinto muito forte essa responsabilidade. O Bala é um resgate coletivo de nossa geração para fazer arte."

O Bala Desejo germinou em uma comunidade de amigos durante a pandemia da Covid-19. Os pais de Julia Mestre decidiram viver na serra do Rio e precipitaram a ideia fixa da filha de experimentar a vida numa trupe. Ela convidou então Ibarra, Nunes, Morelenbaum e João Gil, do trio Gilsons, a levarem suas trouxas para o apartamento em Copacabana. Juntos, atravessariam os dias incertos da quarentena.

"Fazer música é uma forma de estar sempre desperto", diz Mestre. "A gente resolveu fazer um estúdio em um dos três quartos. Pensamos em fazer experimentos e aí começamos a entrar na live da Teresa Cristina. Isso dava um impacto nas pessoas e era bom para a gente também. Desengavetamos músicas e vimos que estava começando o burburinho de alguma coisa."

Depois de assistir a uma dessas lives, no Instagram, o sócio-fundador do Coala Festival, Gabriel Andrade, propôs um disco aos jovens músicos. A partir do convite, o grupo passou a se enxergar como tal. O processo do álbum durou 11 meses e sua criação aconteceu no apartamento em Copacabana e em outras casas ao longo da quarentena.

O disco do Bala se divide em lado A e Lado B, como os velhos bolachões, e sua estética também contém dois lados, o espiritual e o musical. Nas canções e conversas, os pensamentos dos artistas envolvem a carnavalização da vida, a união geracional, a resposta dionisíaca à onda de melancolia, o mergulho no próprio corpo e a arte como extensão da vivência. Nas roupas cotidianas, Nunes e Ibarra realizam em si uma revisão da masculinidade. E ainda há o palco, onde todos impõem "uma forma alegre", como define Mestre.

"Era de dia de folia/ E a gente não se via/ Era dia de maldade/ E a gente na saudade/ Sol queimando o chão da rua/ Tão vestida quanto nua", cantam em "Baile de Máscaras (Recarnaval)". O apelo por mais cores prossegue em "Comanche": "Meu maior desejo é viver por enquanto/ Um pouco mais vivo/ Vivo e colorido/ Menos dor mais brilho/ Bem no íntimo da multidão".

No plano musical, eles alinham o rigor das melodias e harmonias a uma atmosfera lúdica e põem a sua geração em diálogo com a história dos inovadores da MPB, reivindicando as referências heterodoxas de Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Rita Lee, Jorge Ben, Ney Matogrosso, Moraes Moreira, Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. Em seu tom experimental, a faixa "Sim Sim Sim", que nomeia o disco, cria um elo atemporal com a vanguarda paulista.

"Estar ligado a um tempo não é só uma questão do que soa na obra. É uma atitude ou um jeito de se colocar no mundo", diz Ibarra. "Quando você ouve um disco do Bala Desejo, que tem uma estética mais antiga, e fala que isso parece que está dentro de um contexto, quer dizer que está transparecendo o que não se ouve, algo além. Essa é a vontade que a gente tem: dar a mão e se entender como geração. Agora é a gente, vambora, vamos fazer juntos."

Coproduzido por Ana Frango Elétrico, o disco traz a colaboração dos músicos Alberto Continentino, no baixo, e Thomas Harres, Daniel Conceição e Marcelo Costa, na bateria e percussão. O gesto de absorver os ritmos da América Latina, em "Dourado Dourado", "Passarinha" e "Nana del Caballo Grande", revela uma ambição internacionalista.

"Não foi algo intencional: ah, vamos misturar. Não era. Era um sentimento interno de referências que fazem sentido ali, que não nasceram à toa no continente. Ter um reggae, uma chula, uma salsa, um rock, um frevo não é ‘vamos fazer um disco múltiplo’. Não foi", diz Dora, filha do violoncelista e arranjador Jaques Morelenbaum e da cantora Paula Morelenbaum.

"Muita gente pensa logo em estética, porque é uma estética orgânica, setentista, e aí já coloca como uma coisa do passado. Só que todas as escolhas foram antes por uma questão de melodia, harmonia e letra. A matéria-prima elementar da música nos fez chegar em todos os lugares", observa Ibarra.

À época das reuniões, Lucas Nunes saiu da bolha e se mudou para a casa do compositor Caetano Veloso, no início da direção musical do disco "Meu Coco". Nos dias anteriores ao nosso encontro, foi possível acompanhar Nunes nos ensaios da nova turnê do tropicalista, coordenando o grupo de músicos mais velhos no estúdio em São Conrado, embaixo da residência de Caetano. Com Ibarra, na quarentena, ele finalizou o disco da banda Dônica, também formada por Tom Veloso.

"Se eu tenho um plano, qual seria ele? Tivemos alguns planos. Tem uma coisa bonita que o Bala Desejo está trazendo, que muita gente fala, que é o Brasil", diz Nunes. "Um Brasil", emenda Dora. "Espero que isso cada vez mais seja exposto pro mundo porque é verdadeiro", continua Nunes. "A amizade de nós quatro fazendo uma parada que a gente não esperava fazer, num tempo muito rápido e chegando a um lugar em que estamos muito felizes e à vontade com as composições, o som, a ideia, o ‘sim, sim, sim’."

A assimilação da influência da música dos anos 1970, insisto, está no centro do projeto do Bala Desejo ou vem de uma visão externa da crítica acatada pelos quatro? As respostas oferecem nuances. "Quando falam dos Novos Baianos, ou principalmente dos Doces Bárbaros, dos Secos e Molhados, eu concordo porque, claro, são inspirações. Mas eu não acho que tenha muito a ver como proposta, falando do disco, não como movimento", sustenta Ibarra.

"Foi realmente uma referência, não necessariamente as músicas setentistas, mas o som", pondera Morelenbaum. "A gente quis, sim, fazer um disco gravado ao vivo pensando nessas referências de sensação do que é um disco todo gravado ao vivo, com os músicos interagindo, criando juntos na gravação, inventando novas partes."

A cantora filia o Bala Desejo à "promessa de felicidade" identificada por uma tradição crítica na bossa nova. "Sinto muito isso na gente. Esse lugar da canção brasileira, essa promessa de felicidade". Minutos antes, em meio ao ruído geral, Morelenbaum esboçou uma definição poética do disco: "É sobre a possibilidade de a gente se amar".

No fim do papo, com os olhos tão densos quanto as suas sobrancelhas, Ibarra recita o poema "Digo Sim", de Ferreira Gullar: "Não digo que a vida é bela/ tampouco me nego a ela:/ – digo sim".

Sim Sim Sim

  • Onde Disponível nas plataformas digitais de streaming
  • Autor Banda Bala Desejo
  • Produção Ana Frango Elétrico, com supervisão de Marcus Preto
  • Gravadora Coala Records
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