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Livros

Em 'Tchevengur', Andrei Platônov inova a prosa russa à Guimarães Rosa

Referência a cidade paradisíaca onde o comunismo teria surgido de forma natural, título foi proibido e ficou anos esquecido

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Raquel Toledo

Professora, pesquisadora e mestre em literatura e cultura russa pela Universidade de São Paulo

Tchevengur

  • Preço R$ 102 (584 págs.)
  • Autor Andrei Platônov
  • Editora Ars et Vita
  • Tradução Maria Vragova e Graziela Schneider

A literatura russa do século 20 passou muito tempo ofuscada pelos gigantes que vieram antes, em especial Tolstói e Dostoiévski –dupla que é, ainda hoje, sinônimo de Rússia no mundo das letras de forma geral. Foram poucos os textos que furaram a bolha e se tornaram conhecidos fora do país, bastante embalados pela propaganda antissoviética que dominou quase todo o século passado.

Talvez "Doutor Jivago", de Boris Pasternak, seja o grande romance soviético no Ocidente, graças também à devolução do prêmio a que o autor se submeteu para evitar represálias em seu país, além da adaptação para as telas de David Lean. Ainda é preciso citar a distopia premonitória "Nós", de Ievguêni Zamiátin, e o satírico e hoje cool "O Mestre e Margarida", de Mikhail Bulgákov —ambos com mais de uma tradução direta do russo no mercado nacional.

Dentre esses três títulos, apenas o de Pasternak parece querer emular os grandes romances do século anterior. Bulgákov e Zamiátin seguem por caminhos modernos, lançando mão do não realismo na busca por representar um cotidiano cada vez mais absurdo e sem precedentes na história mundial: a Revolução Socialista e os anos soviéticos.

No mesmo caminho, outros tantos livros importantes e interessantes foram escritos, mas negligenciados do lado de cá do globo. Essa lista, porém, acabou de diminuir com a publicação pela primeira vez no país de "Tchevengur", obra-prima de Andrei Platônov (1899-1951).

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O escritor russo Andrei Platônov (1899-1951), autor de 'Tchevengur', em retrato de 1938 de fotógrafo desconhecido - Wikimedia Commons/Reprodução

A chegada tardia do autor ao Brasil –a primeira tradução de alguns de seus trabalhos por aqui aconteceu apenas em 2011, na nova antologia do conto russo organizada por Bruno Barretto Gomide, com o conto "Makar, o Duvidador" (tradução de Denise Sales)– pode ser justificada em sua própria natureza estética.

Em ensaio sobre a prosa soviética, Josef Bródski comenta o desafio tradutório que Platónov traz, podendo ser em alguns casos "intraduzível". Maria Vragova, ao prefaciar sua tradução em parceria com Graziela Schneider, agora publicada pela Ars et Vita, compara a "originalidade da língua platonoviana" a Guimarães Rosa.

Mais perto do autor estão os cubo-futuristas russos, poetas e artistas da estirpe de Maiakóvski e Khlébnikov que se dedicaram a criar uma nova língua e acreditavam na transformação da sociedade através da linguagem.

Platônov também foi poeta. Em, 1922 publicou "A Profundeza Azul", seu primeiro livro de poemas. No ano anterior, já havia publicado sua primeira coletânea de contos, "Eletrificação", título que remete às suas experiências profissionais anteriores.

Nascido em família operária, seu pai era mecânico ferroviário e inventor autodidata, estudou no Instituto Politécnico de Voronej, região onde nasceu, e depois trabalhou na ferroviária local, antes de lutar na Guerra Civil.

É justamente nesse período que se passa "Tchevengur". O romance nos apresenta a Zakhar Pávlovitch, um homem habilidoso com as máquinas, capaz de inventar ou reparar quase tudo. Esse poder reparador acaba estendendo-se ao órfão Aleksandr Dvánov, cujo pai afogou-se na busca de retornar ao lugar de onde todos nós viemos antes de nascer, numa espécie de fixação mística.

Dvánov, também com certa obsessão, percorre as estepes russas –como no gogoliano "Almas Mortas"– ao lado de uma figura um tanto quixotesca. Stepán Kopienkin é um revolucionário que, montado em Força Proletária, seu cavalo, cumpre os ideais bolcheviques, além de ser apaixonado por Rosa Luxemburgo.

Juntos, os peregrinos chegam a Tchevengur, uma espécie de cidade paradisíaca onde o comunismo surgiu de forma natural, ideal, e não como uma teoria pela qual se precisou lutar. A possível interpretação bíblica, bem como o retrato que o autor faz dessa cidade, não tão perfeita na prática, impediram a publicação integral do romance, que chegou apenas em trechos em jornais soviéticos no fim dos anos 1920, pouco antes de ser proibido.

A criatividade linguística presente no romance –e encarada com sucesso pelas tradutoras– está, também, muito distante dos ideais realistas de socialismo, fazendo com que a obra só fosse conhecida na íntegra em solo soviético em 1988, na Perestroika. Platônov não viu quase nenhuma de suas obras publicadas e morreu aos 51 anos, de tuberculose, sem o reconhecimento devido.

Ainda segundo Bródski, o talento do autor ofusca seus contemporâneos e também aqueles que vieram depois dele, afinal é o herdeiro daquilo que sempre fez a grande literatura russa tão especial: em vez de tomar o caminho óbvio, escolher a inovação, ainda que isso custe tantos anos de esquecimento.

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