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Entenda por que série 'Cavaleiro da Lua' traz novo proibidão egípcio

Cruzamento do eletrônico com o rap e o hip-hop traz a expressão de uma população cada vez mais marginalizada

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Washington

A maior parte do público da série "Cavaleiro da Lua" pode não ter percebido, mas o diretor Mohamed Diab praticamente mostrou um dedo do meio para o regime de seu país natal, o Egito. Um dedo metafórico —mas ainda assim um dedo, voltado a um governo obcecado pela censura.

Diab decidiu tocar a música "El Melouk" nos créditos do segundo episódio, que foi ao ar neste dia 6. O gênero da canção, conhecido como mahraganat, é proibido pelo regime egípcio. Artistas não podem, em tese, se apresentar em casas de show. Às vezes, são detidos pela polícia.

O gesto não passou batido no Egito nem na diáspora. Foi recebido como catarse coletiva. Não só porque Diab desafiou o governo conservador que controla o Cairo, mas porque conseguiu também colocar uma música popular associada às classes baixas em uma série da Marvel, no Disney+. De certo modo, como brasileiros reagem aos pulos da Anitta.

Oscar Isaac como Steven Grant na série "Cavaleiro da Lua", nos estúdios da Marvel
Oscar Isaac como Steven Grant na série "Cavaleiro da Lua", nos estúdios da Marvel - Csaba Aknay/Marvel Studios

O mahraganat é o cruzamento do eletrônico com o rap e o hip-hop. Tem um significado parecido com o do funk proibidão do Rio. O nome quer dizer "festivais", em português, no sentido de ser uma coisa celebratória.

O gênero apareceu no subterrâneo egípcio no início dos anos 2000 como a expressão de uma população cada vez mais marginalizada. Por vezes alucinante, com batida rápida e letra explícita, essa música virou trilha sonora de casamentos. Era o que se ouvia nos táxis e nos barcos-discoteca que navegam pelo rio Nilo. Uma das faixas mais populares, "Bent El-Geran", tem 588 milhões de visualizações no site YouTube.

O mahraganat tocou nos protestos que, em 2011, culminaram na queda do ditador Hosni Mubarak. Depois daquelas revoltas, o país elegeu o líder islamita Mohamed Morsi, marcando uma guinada conservadora. Em seguida, o Exército deu um golpe e colocou o militar Abdel Fattah al-Sisi no poder, onde segue até hoje. Como maneira de se legitimar e apaziguar setores mais radicais, o regime vem perseguindo e reprimindo a produção artística e a liberdade de expressão de uma maneira geral.

Esse gênero musical incomoda, em especial, porque é um forte símbolo das classes trabalhadoras e dos jovens que já se mostraram capazes de derrubar um ditador. O conteúdo das letras incomoda as autoridades, também. Em alguns casos, os artistas mencionam drogas e sexo de uma maneira explícita. Depois que um grupo se apresentou em 2020 falando de beber álcool e fumar maconha, o sindicato dos músicos emitiu uma nota proibindo qualquer apresentação de canções de estilo mahraganat.

A proibição é exercida pela polícia, que monitora espaços de show. Isso não quer dizer que a música tenha desaparecido. Migrou para ambientes privados, longe dos olhos do Estado. Artistas também passaram a se apresentar no exterior, como outra maneira de escapar de toda a censura.

"El Melouk", a música que tocou em "Cavaleiro da Lua", não é tão polêmica em si. A letra é uma espécie de estufada de peito, com um eu lírico se gabando de suas qualidades. Mas não deixa de ser a expressão de um gênero que o governo desautoriza. O clipe dos artistas Ahmed Saad, Enaba e Double Zuksh teve mais de 56 milhões de visualizações.

O diretor de "Cavaleiro da Lua" não escolheu o gênero por acaso. Diab é conhecido pela sua crítica social, que bate na cara do regime. Seu filme "O Cairo 678", sobre o assédio sexual no país, saiu em dezembro de 2010, poucos meses antes dos protestos, talvez como parte do espírito de uma época que já pressagiava um levante popular.

O longa "Eshtebak", de 2016, conta a história de um grupo de pessoas preso em um camburão da polícia —e narra também o fracasso da revolução, que no final das contas acabou devolvendo o Egito a um regime militar.

Tão revolucionário quanto incluir uma canção de mahraganat em uma produção da Marvel é o fato de que "Cavaleiro da Lua" conta com uma equipe egípcia, a começar pelo próprio diretor. Pode parecer do senso comum que uma série em grande parte baseada no Egito e com pitadas de mitologia egípcia tenha atores e uma equipe do país.

Hollywood, no entanto, até recentemente não se importava muito com a inclusão de algumas minorias. Infelizmente, é novidade que atores de origem árabe e islâmica tenham oportunidade de representar a si mesmos nas telas.

Diab, que além de diretor de "Cavaleiro da Lua" é produtor executivo, fez questão de trabalhar com conterrâneos. Quis assim evitar que a série reproduzisse os clichês associados ao Oriente Médio, como o de terroristas barbudos com metralhadoras reprimindo todas as mulheres.

Ele contratou a atriz egípcio-palestina May Calamawy (da série "Ramy") para o papel de Layla. O egípcio-britânico Khalid Abdalla (do filme "O Caçador de Pipas") ficou com o personagem Selim. Ao Hollywood Reporter, Diab estimou que 90% dos personagens egípcios na série foram interpretados por egípcios, incluindo papéis de figurantes.

Diab chamou também o compositor egípcio Hesham Nazih para compor a trilha sonora. Nazih produziu canções com toques clássicos da cultura árabe, mas que têm também as sonoridades urbanas de um lugar como o Cairo —que é uma caótica megalópole bastante parecida com São Paulo.

O conjunto da obra acaba reforçando justamente essa ideia de que o Egito se parece com outras partes do mundo. Não é um país exótico, de odaliscas e camelos, mas uma outra margem do capitalismo, onde um gênero musical das classes trabalhadoras incomoda elites e autoridades.

Cavaleiro da Lua

  • Quando EUA, 2022
  • Onde No Disney +
  • Elenco Oscar Isaac, Ethan Hawke, May Calamawy
  • Criação Jeremy Slater
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