Descrição de chapéu
Livros

Gilberto Gil atinge auge com texto 'Antropofagia e Tropicália' após posse

Fala ocorreu no dia 14 e é a sua mais importante reflexão sobre a história do tropicalismo e adesão ao credo modernista

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

​O verdadeiro discurso de posse do compositor Gilberto Gil não aconteceu em 8 de abril, no salão do Petit Trianon, na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio.

No dia 14, para uma plateia menor, no auditório da instituição, o novo acadêmico apresentou um texto autobiográfico mais abrangente no ciclo de palestras sobre o centenário da Semana de 1922. Com 16 páginas, a conferência "Antropofagia e Tropicália" é a mais importante reflexão textual de Gil sobre a história do tropicalismo e sua "conversão ou adesão ao credo modernista".

Na plateia da ABL, a presença de Caetano Veloso criou uma atmosfera de diálogo implícito entre os dois líderes musicais da tropicália. No livro "Verdade Tropical", de 1997, Caetano construiu um influente ensaio sobre o ciclo vanguardista de sua geração e a aproximação da antropofagia de Oswald de Andrade com a poesia concreta dos irmãos Campos e Décio Pignatari no processo de mudanças internas da música popular e de transformações gerais das artes. Sem desenvolver um ensaísmo em paralelo aos discos, Gil se concentrou nos depoimentos à imprensa.

Em 1968, a paródia do fardão da ABL em seu disco tropicalista sintetizou o convívio bélico entre vanguardas e academicismos. Em 2022, numa contradição benéfica, a ABL pode levar Gil a escrever com mais frequência sobre seu ideário artístico.

Sua eleição teve um efeito profilático sobre a cadeira 20, ocupada de 1970 a 1998 pelo general Aurélio de Lira Tavares, mortal imortal levado à casa no auge da ditadura militar, num gesto bajulatório que mancha a história da ABL. Lira Tavares foi um dos signatários do Ato Institucional nº 5 (AI-5), marco da supressão de direitos individuais no país e também da prisão e exílio dos músicos baianos.

O cantor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil durante a solenidade de posse da cadeira de número 20, na Academia Brasileira de Letras (ABL), no salão Nobre Petit Trinon, centro do Rio
O cantor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil durante a solenidade de posse da cadeira de número 20, na Academia Brasileira de Letras (ABL), no salão Nobre Petit Trinon, centro do Rio - Claudia Martini - 8.abr.2022/Folhapress

Antes dessa conferência, a produção crítica de Gil sobre a experiência tropicalista teve seus pontos altos em entrevistas, algumas delas reunidas nas coletâneas "Expresso 2222", de 1982, e "O Poético e o Político", de 1988, nos anos de sua aliança programática com o antropólogo Antonio Risério, e depois em "Disposições Amoráveis", de 2015, coordenado por Ana de Oliveira, ou ainda nos comentários a suas canções no modelar "Todas as Letras", organizado pelo letrista Carlos Rennó.

Publicado em agosto de 1970 no semanário "Pasquim", o artigo "Recuso + Aceito = Receito" tem lugar central em suas manifestações críticas. Ele nasceu da recusa ao prêmio Golfinho de Ouro, que lhe foi conferido pelo Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio em reconhecimento ao samba "Aquele Abraço".

Sem acatar o conselho do pai, que aprovava o troféu, Gil mandou o golfinho voltar para as águas tranquilas de sua insignificância. "Aquele Abraço" não deveria soar como uma superação do tropicalismo. O texto inaugurou, sem nuances, a afirmação de sua identidade racial.

"E que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que 'Aquele Abraço' não significa que eu tenha me ‘regenerado’, que eu tenha me tornado ‘bom crioulo puxador de samba’ como eles querem que sejam todos os negros que realmente ‘sabem qual é o seu lugar’. Eu não sei qual é o meu e não estou em lugar nenhum", afirmou o artista em 1970. Ali estava condensado o Gil bom de briga e de verbo.

O centenário da abolição da escravatura, em 1988, o motivou a escrever outros dois textos centrais em seu pensamento sobre a negritude, "Abo/lições" e "Reabolição", nos quais defendeu a validade das celebrações em torno da Lei Áurea, sancionada pela princesa Isabel. Com atraso de décadas, o texto "Antropofagia e Tropicália" cumpre um exame conceitual, e por escrito, de seu papel na gênese do tropicalismo.

Gil dividiu a conferência da ABL em quatro partes. "Eu vi" aborda os anos pré-tropicalistas; "Outros viram daqui" comenta as visões de Hélio Oiticica, Augusto de Campos, Hermano Vianna e Antonio Cícero; "Outros viram de fora" passeia pela crítica estrangeira de Bruce Gilman, Charles A. Perrone e Liv Sovik; "Eu ainda vejo" condensa seu olhar retrospectivo sobre a intervenção antropofágica em 1967/1968, articulando ideias de Caetano, do cineasta Glauber Rocha e do ensaísta da contracultura Luiz Carlos Maciel. Num trecho, ele reconhece um herdeiro direto do movimento: "O discurso metafórico e híbrido da música no mangue beat, em particular, são reminiscências de experimentos em música e desempenho no coração da tropicália".

Três passagens do texto são instantes raros, até certo ponto inéditos, de seu pensamento crítico. Gil explicita sua sensibilidade pré-tropicalista, assume sua liderança inicial na proposição do tropicalismo e escancara o impacto do exílio em seu ser e sua estilística.

O compositor celebrou as influências de Luiz Gonzaga e Caymmi, mais conhecidas, e ressaltou o peso da cantoras da Rádio Nacional, dos Anjos do Inferno, do Bando da Lua, do Trio Irakitan, da Orquestra de Severino Araújo. O garoto se interessava ainda por Inezita Barroso, Waldir Azevedo, Jacó do Bandolim, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Ângela Maria e Cauby Peixoto.

Dois nomes obscuros aparecem nos primórdios do instrumentista – "o violão de Codó e a guitarra elétrica de João da Matança nas noites da cidade da Bahia". Na matriz baiana, Gil relembrou o samba-blues de Batatinha, o trio elétrico de Dodô e Osmar e "a pulsação mântrica" do bloco Filhos de Gandhy.

Mais surpreendente, Gil mencionou a cantora lírica peruana Yma Sumac e o cantor chileno de boleros Lucho Gatica. "Os fados de Amália Rodrigues; os corridos portugueses e os pasodobles espanhóis; os chansoniers e os acordeonistas franceses; a música ligeira italiana (Domenico Modugno); Glenn Miller e Count Basie, Elvis Presley e Harry Belafonte".

A modernidade se insinuava no contato com a música atonal, serial e dodecafônica das vanguardas europeias e americanas nos Seminários de Música da Universidade da Bahia. Esses artistas e vertentes da música popular brasileira e internacional formaram a sensibilidade musical de Gil antes do trauma da bossa nova de "Chega de Saudade", em 1958.

"Até que chega o tempo de apreciar uma música nova, mais intrigante, mais surpreendente, mais instigante, ‘une autre musique’, uma ‘música além’, uma música ‘nova goma de mascar’, nova textura, novo sabor. E acho que isso começa com João Gilberto, o agente mais próximo pelo samba e pela fala, de uma outra maneira de enxergar o som, de mastigar a música", disse Gil.

De volta à origem do tropicalismo, ele rememorou sua célebre viagem a Pernambuco e o arrebatamento com a Banda de Pífaros de Caruaru, irmanado ao impacto do disco "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", dos Beatles.

"Emergia ali naquele encontro entre a tradição medievalesca dos pífaros e a vanguarda popular contemporânea dos Beatles um impulso de aproximação irrecusável entre aquelas manifestações em todos os sentidos extremas: sim, os extremos se tocam. E tocavam em mim aquelas duas bandas tão díspares, tão distantes no tempo e no espaço, ainda assim, amalgamadas numa estranha e insinuante complementaridade", analisou.

"Aquilo tudo me assaltava e me inflamava o pensamento sobre o trabalho de atualização da música popular entre nós, tarefa à qual eu acreditava que a minha geração teria o dever de se dedicar. Pelo menos, parte dela. E foi o que me impulsionou ali", relatou Gil.

"Convoquei vários colegas a refletir e esboçar um projeto de modernização da nossa canção popular. Alguns se sensibilizaram e com eles começamos os rascunhos daquele movimento que viria a ser chamado de tropicalismo."

"A antropofagia do Oswald se manifestava no anseio de transformar e transfigurar aquele novo corpo cultural que necessitava pelo menos de outras pernas e braços –que a cabeça já era outra."

No diálogo mais recente com o amigo, Caetano vinha ponderando que Gil atenuava a importância de seu gesto inicial na erupção do movimento. "Sem Caetano, talvez a tropicália não existisse; comigo, não existiria", disse Gil à Folha, nos 50 anos do movimento.

A organização conceitual de Caetano, porém, não existiria sem sua intuição e liderança política. Caetano não deixaria de notar, após a conferência, o passo adiante na admissão de Gil do próprio protagonismo nas articulações em 1967.

Sem depender dessa fase de choques, Gil é o músico brasileiro mais engenhoso de sua geração, explorador de uma vertente pessoal do violão, dotado o suficiente para ombrear seus mestres.

De outro lado, nenhum artista surgido nos anos 60 enfrentou mais do que Gil os perigos da institucionalização da vanguarda. Ele esticou a sua proposição tropicalista de entrar em todas as estruturas e sair de todas elas, da Câmara de Vereadores de Salvador ao Ministério da Cultura do governo Lula. A ABL surge como um estágio "nesse itinerário da leveza pelo ar".

Na palestra, Gil reconheceu sua angústia em apressar o fim do movimento, assumindo-se incapaz de suportar todos os conflitos estéticos, pessoais e geracionais. Ele considerava a modernização da música brasileira uma tarefa cumprida.

"Eu, pessoalmente, não via a hora de sair daquela agonia. Atormentado por uma insistente premonição de que aquilo tudo poderia trazer muitos danos existenciais, com muito sofrimento para o qual não me considerava preparado, ansiava pelo fim daquela jornada ou, pelo menos, com uma diminuição considerável daquela tensão", admitiu o tropicalista.

Neste ponto são nítidas as suas diferenças com as personalidades de Caetano, Oiticica, Augusto de Campos, Glauber Rocha e Tom Zé, que não veem a vanguarda como um corte provisório, mas, sim, contínuo no sistema cultural. Gil preservou, entretanto, "o interesse em manter alguns resíduos de experimentalismo no trabalho de composição e arranjo de canções".

Perto do fim, ele avaliou as mudanças estéticas e espirituais trazidas pela violência do expurgo do país. "A prisão e o exílio foram um epílogo duro e ao mesmo tempo desanuviador. Deixariam marcas indeléveis na minha carapaça existencial; na formação do meu caráter; na tipologia da minha individualidade; na definição dos traços delicados da escultura da minha personalidade. Ao mesmo tempo em que acentuaria, no artista, um gosto pela expressividade aberta; uma busca do prazer e da alegria no arrebatamento histriônico da performance; o arrojo e o destempero vocal –que Hélio Oiticica elogiara e saudara naquele seu artigo de 1967– e que eu carregaria no meu canto para o resto da vida até arrebentar de vez com uma das minhas cordas vocais."

Em 1968, o designer e pensador tropicalista Rogério Duarte afirmou que Gil era o profeta e Caetano apenas o seu apóstolo. Seria fascinante a reunião de profeta e apóstolo, ambos na curva dos 80 anos, num volume único com a conferência "Diferentemente dos Americanos do Norte", de Caetano Veloso, no Museu de Arte Moderna do Rio, em 1993, e a conferência "Antropofagia e Tropicália", de Gilberto Gil, em 2022. São dois testemunhos essenciais para entender por que, ao longo de quase seis décadas, seus contemporâneos insistem em ouvi-los, contestá-los e admirá-los.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.