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'O Acontecimento' revela o aborto de forma nua como angústia solitária

Livro de Annie Ernaux, assumidamente autobiográfico, torna leitores testemunhas da memória em estado puro

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Noemi Jaffe

O Acontecimento

  • Preço R$ 54,90 (80 págs.); R$ 32,90 (ebook)
  • Autoria Annie Ernaux
  • Editora Fósforo
  • Tradução Isadora de Araújo Pontes

As duas epígrafes do livro "O Acontecimento", de Annie Ernaux, sintetizam essa narrativa exasperantemente verdadeira: "Que o acontecimento se torne escrita. E que a escrita seja acontecimento". E "talvez a memória não seja mais do que olhar as coisas até o limite".

É preciso entender "acontecimento", aqui, além de mera ação ou peripécia. Trata-se de uma singularidade histórica —coletiva ou individual, capaz de determinar presente, passado e futuro. E se a memória é mesmo a exploração radical das coisas, como afirma a segunda epígrafe, então esse acontecimento narrado por Ernaux é a memória em seu estado mais puro.

O livro é assumidamente autobiográfico e a narração de um aborto —o acontecimento— é feita de forma nua, sem gordura nem pompa, como se o leitor se tornasse testemunha e acompanhasse a autora em seu périplo de dor e angústia, durante o processo abortivo, mas também depois, quando ela se recorda de tudo.

Em 1963, filha de uma família que jamais aceitaria que ela sequer estivesse grávida, quanto mais que abortasse, Ernaux, recém-formada em letras e professora também recente de francês, precisa encontrar uma saída para sua gravidez indesejada.

Com uma mãe que checa até suas calcinhas atrás de marcas de sangue e um parceiro que ela mal encontra, tudo recai sobre ela, numa época em que o silêncio é o melhor amigo das jovens "pecadoras".

A sinceridade desse relato seco, sem metáforas e quase sem adjetivos, não está só na sequência de eventos, mas também na maneira como a autora confessa o processo de escrita: "Quero mergulhar mais uma vez nesse período da minha vida, saber o que se encontra ali. [...] Vou me esforçar [...], até que surjam algumas palavras sobre as quais eu possa dizer ‘é isso’".

E sim, no prosseguimento do livro, o leitor vai repetidamente ouvir e repetir: "é isso". Porque a linguagem do que Ernaux conta é de uma tal fisicalidade e objetividade que sentimos suas palavras penetrarem em nosso próprio corpo, assim como podemos sentir, junto com ela, a injustiça tremenda que sofrem as mulheres que desejam ou precisam abortar, na época e, infelizmente, ainda hoje.

Grande parte do livro é a narração da busca por alguém que aceitasse fazer o aborto de forma segura e confidencial —algo muito difícil para a época e para a França de então.

Com 23 anos, sem dinheiro nem informações e prestes a entregar uma monografia, Ernaux vê gravidez por toda parte e seu tempo e espaço se reduzem a náuseas e nojo. Tudo ganha contornos de inutilidade e frivolidade e quem parecia amigo se torna quase desconhecido. Seu problema é intransferível e quase inenarrável —quem quer escutar os problemas de uma mimadazinha que engravidou?

Num episódio, ela chega a introduzir uma agulha de tricô em seu sexo, somente para se dar conta de que não conseguiria. Mas continua: "Ter vivido uma coisa [...] dá o direito imprescritível de escrevê-la. Não existe verdade inferior."

Interpolando relato e comentários —quase sempre entre parênteses—, o livro vai se enredando e nos enredando numa série de tentativas fracassadas, numa espiral desesperada atrás de uma solução e também atrás da fidelidade das lembranças, sempre enviesadas por desejos e necessidades. Como ser fiel ou por que ser fiel?

Ao final da leitura, compreendemos que o próprio acontecimento, assim como a escrita sobre ele, partilha de dificuldades semelhantes: atingir o cerne das coisas, transformar pensamento em ação, correr o risco de esquecer e também de lembrar.

"O Acontecimento" é um desses livros urgentes, num tempo em que o tema do aborto ainda é um tabu, tornando a leitura também ela um acontecimento, desses que determinam o presente, o passado e o futuro de mulheres que, tanto tempo depois, ainda se encontram sós.

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