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Ópera feita em campo de concentração teve ajuste do além, mostra filme

Obra, que ficou perdida por décadas, fala do Terceiro Reich de forma alegórica e aborda a morte como esperança

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O Kaiser de Atlântida

  • Quando No Sesc 24 de Maio, São Paulo, dia 7, às 17h, e dia 9, às 13h; no IMS Rio, dia 8, às 18; e no É Tudo Verdade Play, online
  • Produção Espanha/Argentina/República Tcheca, 2022
  • Direção Sebastián Alfie

Na abertura do documentário "O Kaiser de Atlântida", de Sebastián Alfie, a animação —que evoca os desenhos em carvão feitos pelos prisioneiros dos nazistas— tenta imaginar como poderiam ter sido os ensaios da ópera "Der Kaiser von Atlantis", do compositor Viktor Ullmann (1898-1944), com libreto de Peter Kien (1919-1944), no campo de Terezín, na atual República Tcheca.

A curta animação não impede a música de ser a protagonista: as vozes, ao fundo —com todas as estranhezas da música germânica do período entre as guerras—, são comentadas por um violino solista, cujas frases transparecem "uma alegria falsa", formulação usada adiante no filme por um dos entrevistados.

Cena do documentário 'O Kaiser de Atlântida', dirigido por Sebastián Alfie e exibido no É Tudo Verdade 2022 - Divulgação

Escrita e ensaiada por prisioneiros, a ópera —ao contrário do "Quarteto para o Fim dos Tempos" (1941), de Olivier Messiaen— não chegou a estrear durante a Segunda Guerra Mundial. O campo de Terezín foi também usado como trânsito para o extermínio em Auschwitz, onde compositor e libretista foram assassinados. "Der Kaiser von Atlantis", a ópera, permaneceu inédita por 30 anos.

Com roteiro minucioso e realização impecável, o documentário de Alfie conta a história a partir de uma montagem da ópera conduzida pelo Teatro Real de Madri em 2016, com direção cênica de Gustavo Tambascio (1948-2018) e musical de Pedro Halffter.

A história escrita por Kien surge, no filme, através do contexto que envolve os ensaios para a montagem espanhola. Os vários trechos musicais presentes no documentário trazem performances de altíssimo nível a cargo do elenco de solistas.

Diante da sanha de um governante genocida de poder ilimitado —o "Imperador Acima de Tudo", ou Kaiser Overall— somente a própria Morte, utopicamente, poderia ajudar: personificada por um baixo-barítono, ela mesma se ofende diante da desumanidade do Kaiser de Atlântida e se recusa a fazer o seu trabalho; assim, durante algum tempo, ninguém mais morrerá.

Por um lado, isso quer dizer que "não é a morte que produz a doença —na verdade ela a faz cessar", mas também que "estamos obrigados a estar vivos —embora de fato não estejamos de fato", o que coincide dramaticamente com a situação existencial dos criadores da obra. Ter a morte como esperança é um forte signo da desesperança total.

Para além da ópera, o filme de Alfie acompanha a trajetória do regente e compositor britânico Kerry Woodward, responsável pela estreia mundial de "Der Kaiser von Atlantis" em Amsterdã em 1975.
Toda a história de como o manuscrito sobreviveu ao Holocausto até chegar às suas mãos já seria por si interessante, porém Woodward narra também uma experiência espiritualista através da médium Rosemary Brown (1916-2001), conhecida pela comunicação que afirmava ter com compositores já falecidos.

Em sua vivência nos anos 1970 —exibida no filme através de gravação em fita de rolo de uma das sessões com Brown— ele crê ter entrado em contato direto com Ullmann, que sugeriu reparos em pequenos (mas importantes) detalhes da partitura original.

Acolhida respeitosamente como mais uma camada interpretativa, como mais um elo dessa história que mescla música, teatro, texto, interpretação histórica, dilemas éticos, tirania, racismo, guerra e morte, a versão de Woodward também está lá, justaposta, sem forçar falsas relações causais.

Todos os envolvidos colocam-se, cada qual a seu modo, a serviço da obra de Ullmann-Kien, e é isso o que faz do documentário "O Kaiser de Atlântida" um grande filme. No mais, é tudo verdade.

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