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'Para ser de classe média, precisa ser sociopata', diz Clara Drummond

Autora lança 'Os Coadjuvantes', romance que ridiculariza a elite brasileira e o mundinho das artes

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Ribeirão Preto

"Talvez eu não seja a melhor curadora de arte, mas com certeza sou a melhor curadora de pessoas. É o trabalho do qual mais me orgulho. Através dele, consegui criar a trajetória de vida que sempre quis."

É assim que Vivian Noronha abre um dos capítulos de "Os Coadjuvantes", romance de Clara Drummond recém-lançado pela Companhia das Letras que ironiza a hipocrisia sobre a qual se constrói o mundo das artes.

'Chiclete', obra de Yuli Yamagata de 2019 que ilustra a capa de 'Os Coadjuvantes', de Clara Drummond
'Chiclete', obra de Yuli Yamagata de 2019 que ilustra a capa de 'Os Coadjuvantes', de Clara Drummond - Bruno Lopes/Companhia das Letras

Criada sob os luxos pagos por um dinheiro cuja origem ela própria desconhece numa família abastada do Rio de Janeiro, "uma cidade que te obriga a confrontar a pobreza", Vivian chega aos 30 e, de presente, ganha um pacote de crises existenciais.

Passa a questionar, por exemplo, se é "inteligente o suficiente" para merecer seu "razoável sucesso" profissional ou se seu "principal atributo é poder aceitar um bom número de trabalhos não remunerados necessários para um currículo impecável".

Sua conclusão é que, com "conexões familiares fortes o suficiente para garantir um estágio no Inhotim durante as férias da faculdade", "é só não ser muito burra" para atravessar as portas que já encontrou abertas.

Os questionamentos também se estendem a quem vive ao seu redor, dos amigos —"todos bem-sucedidos, fotogênicos, meio bonitos, ou bonitos, o que é importante"— à família, composta por uma avó que era "uma espécie de velha rica de novela, só que sem ser rica" e por um pai e uma mãe que a dopavam de medicamentos com tarja preta para ensiná-la a manter as aparências custe o que custar.

O criticismo vem embalado por uma ironia como à do humanismo de Gil Vicente ou à do realismo de Machado de Assis. É a ironia necessária, diz a autora, para compreender a elite que trabalhou para eleger Jair Bolsonaro.

Austėja Ščiavinskaitė/Divulgação
A jornalista e escritora brasileira Clara Drummond, autora de 'Os Coadjuvantes' - A jornalista e escritora brasileira Clara Drummond, autora de 'Os Coadjuvantes'

Jornalista por formação, Drummond, que escreve sobre arte e comportamento para revistas, conhece bem o mundo que satiriza em "Os Coadjuvantes". Já passou por muitas feiras de arte, tem muitos artistas plásticos e curadores de arte entre seu círculo de amigos próximos e gosta de escrever sobre as histórias que ouve deles.

"Se você vai a uma SP-Arte, a maior feira de arte do país, é toda uma trip. São pessoas muito ricas que em tese gostam de arte, só que claramente não gostam, porque todos ali votaram no Bolsonaro. Quase todo colecionador é bolsonarista, mas compram obras que criticam a desigualdade social ou fotografias sobre a devastação da Amazônia, sendo que eles próprios são os maiores devastadores da Amazônia. Fazem isso por capital social", diz.

"Outro dia, li que a filha de um dos maiores fabricantes de armas do Brasil, um dos grandes aliados de Bolsonaro, é uma grande colecionadora que faz parte do ‘board’ de não sei qual museu."

Mas o tom da narrativa, Drummond afirma, não é panfletário. Embora seja atravessado por conflitos que nunca pareceram tão atuais como no Brasil de Jair Bolsonaro, o livro nem sequer menciona o nome do presidente ou de partidos políticos.

Era uma das preocupações da autora, que se prova bem-sucedida a começar pela protagonista que não poupa críticas a si. Vivian se orgulha de dizer que é diferente dos pais, mas no fundo sabe que não é tão diferente assim. Chora ao escutar Elis Regina cantando "Como Nossos Pais", a catarse dos encontros psicodélicos que tem com um de seus melhores amigos, e diz que "não existe rico que seja realmente uma boa pessoa".

"Para ser uma pessoa de classe média, você precisa ter um certo grau de sociopatia", explica a autora, que diz se esforçar para não ser parte do problema. "Você olha uma pessoa que está em frente ao supermercado sem o que comer, te pedindo alguma coisa, você diz que não tem nada, mas compra um chocolate caríssimo. É uma coisa que todo mundo faz, é sociopata, mas, como todos agem da mesma forma, está tudo bem."

Os Coadjuvantes

  • Preço R$ 54,90 (112 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Clara Drummond
  • Editora Companhia das Letras
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