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'Piranesi', de Susanna Clarke, acerta ao não ter vergonha do bizarro

Autora une habilidade e sutileza ao entrelaçar outras referências da fantasia e da ficção científica na narrativa

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Piranesi

  • Preço R$ 59,90 (256 págs.); R$ 33,20 (ebook)
  • Autor Susanna Clarke
  • Editora Morro Branco
  • Tradução Heci Regina Candiani

"Desde que o mundo é mundo, é certo que existiram 15 pessoas. Provavelmente existiram mais; mas sou um cientista e devo proceder de acordo com as evidências", escreve em seu diário o protagonista de "Piranesi", romance da britânica Susanna Clarke, 62. Bizarro? O leitor não sabe da missa a metade.

Pode-se dizer que a esquisitice cuidadosamente arquitetada é a zona de conforto de Clarke. Seu monumental romance de estreia, "Jonathan Strange & Mr. Norrell", combinava dois elementos aparentemente imiscíveis –as guerras napoleônicas (nos primeiros anos do século 19) e o reino das fadas– para criar uma atmosfera quase hipnótica de mistério. Com "Piranesi", lançado há pouco no Brasil, a brevidade da narrativa e o elenco enxuto de personagens pode dar a entender que ela decidiu ser mais minimalista, o que é só parcialmente verdade.

Com efeito, o Mundo com M maiúsculo ao qual o protagonista se refere não passa de uma mansão, dentro da qual ele parece ter vivido durante toda a sua existência. Não se trata de uma mansão qualquer, porém.

capa de livro
Capa do livro 'Piranesi', da escritora britânica Susanna Clarke - Reprodução

A Casa, que se estende por Salões e Escadas intermináveis, tem um nível inferior perpetuamente varrido pelo mar (e cheio de peixes, crustáceos e algas que oferecem sustento ao autor do diário); um nível superior que é o Território das Nuvens, fonte da água doce trazida pela chuva que ele recolhe em vasilhas; e os Salões Intermediários, decorados com uma multidão de estátuas. "A Perfeita Organização da Casa é o que nos dá Vida", afirma ele. "A Beleza da Casa é imensurável; sua Bondade, infinita."

O aparente excesso de maiúsculas imita as convenções ortográficas das publicações do século 18, assim como a linguagem formal, detalhadamente descritiva e curiosa do personagem remete o leitor ao Iluminismo. É como se tivessem apagado as memórias de Voltaire, Rousseau ou outro filósofo do século das luzes e trancafiado o sujeito num universo paralelo, regido por leis um tanto diferentes das nossas, mas passíveis de compreensão por métodos racionais.

O diálogo com o século 18 é reforçado pelo próprio título do romance, já que o arquiteto italiano Giovanni Battista Piranesi (1720-1778) foi o autor de uma série de desenhos de gigantescas prisões imaginárias, com escadarias e arcos que parecem não ter fim. É aqui, porém, que mora a ironia –e a primeira pista de que o Mundo do protagonista talvez não seja tão hermeticamente fechado quanto parece.

gravura em água-forte
"Vista Exterior da Suposta Sala Sepulcral da Família de Augusto", gravura em água-forte da série "Antiguidades Romanas" realizada pelo artista italiano Giovanni Battista Pironesi - 19.abr.97 - FSP/Ilustrada

Acontece que o único ser humano vivo além dele a caminhar pelos Salões –"o Outro", como ele o chama– é o responsável por apelidar o autor do diário de "Piranesi". (As demais 13 pessoas já existentes, segundo o cômputo das anotações, são todas esqueletos que estão espalhados pelo labirinto.) E o Outro usa uma linguagem indisfarçavelmente moderna e displicente, distante do estilo setecentista de quem escreve o diário –uma distinção que se mantém clara na competente tradução de Heci Candiani.

Esse contraste de estilos ajuda o leitor a intuir que nem tudo é tão harmônico no que diz respeito à história dos habitantes da Casa interminável. Não convém dizer mais do que isso numa resenha, mas vale a pena ressaltar a habilidade e sutileza com que a autora entrelaça outras referências da fantasia e da ficção científica na narrativa. São, em geral, referências quintessencialmente britânicas, como as obras de C.S. Lewis (o autor de "As Crônicas de Nárnia"), o seriado de TV "Doctor Who" –e talvez também um tantinho de Sherlock Holmes. O livro mostra, mais uma vez, como Clarke acerta o alvo ao não ter vergonha de ser esquisita.

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