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'Bolsonaro não é meu patrão', conta podcaster que levou vida dupla na Marinha

Em depoimento, Thiago André lembra como se esquivou de punição de Forças Armadas enquanto discutia negritude

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São Paulo

A voz de Thiago André, de 32 anos, se fez conhecida. Desde 2019, o comunicador comanda o História Preta, podcast documental sobre a história da população negra.

Se você escutar o episódio de estreia, "O Invisível Gaúcho Negro", vai ouvir que "por motivos de trabalho" ele foi transferido do Rio de Janeiro para a cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Acontece que esse trabalho, o público dele soube este ano, era uma transferência da Marinha, em que ele entrou aos 18 anos.

Retrato de jovem com estúdio de podcast ao fundo
Thiago André, criador do podcast 'História Preta' - Arquivo Pessoal

Essa vida dupla tinha riscos. Isso porque todos os que estão em organizações militares brasileiras são proibidos por lei de se manifestar sobre questões políticas e partidárias —e falar de questões que envolvem a história da população negra e sua atualidade, como os episódios que ele fez sobre a Fundação Palmares, é uma manifestação.

Agora fora da Marinha e integralmente dedicado ao podcast, que conta com financiamento coletivo, ele conta como decidiu ir para a Marinha, fala de quando colocou o projeto em pé e cita as ocasiões em que temeu ser descoberto no trabalho.

"Muitos criadores já falaram sobre como para pessoas negras, que vêm de uma família muito pobre, muitas vezes a sua ascensão não é só sua, é da sua família. Isso pesou muito [decidir sair da Marinha] porque tem muita gente que precisa de mim", conta ele.

Confira o depoimento de Thiago André à Folha.

A família na Marinha

A Marinha apareceu na minha vida quando eu era criança. O meu tio, irmão da minha mãe, é reformado, suboficial da Marinha, e ele era o mais bem-sucedido da família.

Uma das memórias mais antigas que tenho é de, quando criança, ver uma fita cassete do meu tio na Disney. Ele tinha uma gravação bem precária, mas, pensa, era uma família negra, da Baixada Fluminense. A gente não tinha nem videocassete. Meu tio tinha tudo isso, ele estava na Disney e fez a viagem pela Marinha.

Retrato de criança e homem adulto em aniversário
Thiago André, do podcast 'História Preta', e seu tio Paulo, da Marinha - Arquivo pessoal

Era a primeira pessoa da minha família que viajou ao exterior. A gente morava em casas num bairro que não tinha nem calçamento e mal tinha saneamento básico. A gente morava em Austin, que é o último bairro de Nova Iguaçu, e eles moravam muito bem no centro da cidade, com calçamento.

Nunca passei fome, nunca tive necessidade de nada, sempre tive o que vestir. Mas a vida sempre foi ali, no limite. Sempre teve uma rede muito grande para que eu tivesse tudo isso —tinha a minha avó, minha tia, minha mãe. Desde pequeno eu nutria esse sonho de ser o máximo que eu pudesse alcançar na minha vida, e isso seria entrando para a Marinha, no caminho que meu tio fez.

A família na escola

Venho de uma família de professores, minha mãe é professora de história, minha mãe, tia, a irmã dela, um tio. Quando minha mãe fez a graduação dela em história, eu já era grandinho, de dez para 11 anos.

Ela chegava por volta das 22h, 23h, em casa e a gente trocava muitas ideias sobre coisas que ela aprendia na faculdade. Na época, passava uma minissérie na Globo que era sobre história do Brasil com uma pegada de comédia e ela me contava o que era real, o que não era. Essas coisas foram me dando esse prazer de estudar história por prazer mesmo.

A vida acadêmica se tornou um contraponto para a minha vida profissional na Marinha, uma espécie de refúgio no meu dia a dia. Esse mundo foi me atraindo muito mais ao longo da vida, e ele era totalmente oposto daquilo que eu vivia dentro da profissão militar.

Foi com 17 anos, em 2007, que fiz pela primeira vez a prova para Marinha e já consegui entrar no ano seguinte.

O primeiro momento foi um pouco assustador porque era um curso de formação. A missão da escola de formação ali, da primeira escola, que passa é justamente exorcizar o civil e te transformar no militar, e isso nem sempre é gentil.

Retrato de neném em cima de capô de carro, com grupo de adultos e crianças ao lado
Thiago André, do podcast 'História Preta', e sua mãe - Arquivo pessoal

Graduação

Depois do meu curso de cabo, não tinha vaga para ficar no Rio de Janeiro e eu tinha que escolher qualquer outro distrito. Em 2012, fui para o quinto, com sede na cidade de Rio Grande, no extremo sul do Rio Grande do Sul, quase na fronteira com o Uruguai.

Lá é uma localidade que a gente chama de especial porque ganhamos 20% a mais e, a cada dois anos que a gente passa lá, a gente reduz oito meses para aposentadoria.

Mas era uma cidade muito, muito do interior. Não tinha nada, não tinha shopping, não tinha cinema. Era uma cidade fria. Mas, como tudo na vida, a gente se acostuma e se estabiliza. E aí eu pensei que aquele era o momento de eu fazer uma graduação, e entrei na UFPel em 2015.

Retrato de jovem negro com uniforme
Thiago André, criador do podcast 'História Negra', em seu primeiro ano na Escola de Aprendizes de Marinheiros, em 2008 - Arquivo Pessoal

Esquerda x direita

Eu já me considerava uma pessoa de esquerda, progressista, e antes da universidade me envolvi em muitas discussões internas na Marinha. Foi nesses anos que o Brasil descobriu que existia esquerda e direita e as pessoas começaram a assumir seus lados como se fossem times de futebol.

Naturalmente, lá dentro as pessoas também foram escolhendo seus lados e, dentro da ideologia militar, do militarismo, eles acabam se encaixando bastante com o perfil da direita brasileira.

Vivia num ambiente muito mais à direita de opiniões políticas do que na universidade, no Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, a UFPel. A maioria esmagadora das pessoas ali eram de esquerda.

Retrato de jovem negro com uniforme da Marinha
Thiago André, criador do podcast 'História Negra', em seu primeiro ano na Escola de Aprendizes Marinheiros, em 2008 - Arquivo Pessoal

Eu me encontrei numa bolha mais confortável. Percebi que abdiquei de muita coisa na Marinha e não estava recebendo tanto assim em troca. Na verdade, você só continua por uma promessa futura. A gente fica pela promessa do futuro, não pelo que a gente tem no presente.

Negritude

Ir para o Rio Grande do Sul também foi importante para a minha conexão com a minha própria negritude. Sou uma pessoa negra de pele clara. Apesar de ser filho de duas pessoas negras, só uma delas de pele clara, e de ser uma pessoa negra, isso nunca foi uma questão de onde eu vim porque a maioria das pessoas são como eu sou.

Na Baixada Fluminense todo mundo é assim. Talvez eu seja um dos mais clarinhos da minha família. Quando vou para o Rio Grande do Sul, descubro que há muitos negros ali, principalmente em Pelotas e Rio Grande. Esse foi o primeiro choque —e o tema do primeiro episódio do História Preta.

É aí que começam a vir os conflitos. Vi que essa vida de pesquisar, de estar dentro de um arquivo velho, cheio de jornais do século 19, empoeirado e cheio de ácaro me deixa feliz e empolgado. E acordava de manhã e tinha que ir para Marinha, em que só se ouve gente falando besteira, se ouve pessoas racistas. É uma dor.

Eleição de Bolsonaro

Enquanto eu estava na UFPel, fui transferido para o Rio de Janeiro para fazer um curso de formação de carreira. Faltavam seis meses para eu terminar a graduação em história. Era 2018, e eu tinha a intenção de transferir minha matrícula para o Rio.

Antes que eu conseguisse concluir isso, acabei sendo transferido novamente para Santa Catarina. Mas dessa vez fui para o interior de Santa Catarina, e lá não tinha universidade federal com o curso de história para poder terminar a graduação. Isso foi muito decepcionante, muito frustrante.

No fim deste ano, Bolsonaro é eleito, e foi um ano em que temi muito pela minha vida. Sei o que aconteceu com os militares que não se alinharam com o golpe de 1964 e não foi nada bom.

Homem negro veste uniforme branco da marinha e sorri
Thiago André, criador do 'História Preta', que manteve vida dupla na Marinha - Arquivo Pessoal

Um dia eu estava chegando ao trabalho, logo após o primeiro turno, e a piada lá era que o Bolsonaro não ganhou no primeiro turno porque nordestino não sabe votar.

Eu estava com um colega que é do Piauí, que votou no Bolsonaro, inclusive. E aí eu comentei com ele: "Porra, tá vendo isso aí? Os caras falando merda, aqui está cheio de nordestino que votou no cara e tal, inclusive você".

Um outro colega atrás ouviu a minha conversa com ele, passou no meio da gente e falou: "Tomara que o Bolsonaro seja eleito porque gente como você vai desaparecer".

Isso parece paranoia olhando daqui, de 2022, mas naquele momento não era uma situação realmente desesperadora.

O História Preta

Agora, numa cidade pequena, sem universidade pública, percebi que ia ter que ser militar em tempo integral. Meu mundo caiu. Acho que eu nunca chorei tanto na minha vida como nesse dia. Foi nesse momento que eu decidi fazer um podcast.

Primeiro porque era fácil naquele momento. Podcast não era o YouTube, em que se faz vídeo e logo o conteúdo corre e logo você está no celular de alguém. Podcast era uma mídia mais underground até então.

No Rio Grande do Sul, eu fazia estágio dando aula para alunos do EJA, Educação de Jovens e Adultos. Para lidar com essa distância da vida acadêmica, resolvi criar o História Preta, um podcast narrativo documental. Ele foi muito influenciado pelo podcast da Folha, o Presidente da Semana, que estava no seu auge naquela época.

Também nunca tinha visto nenhum conteúdo voltado para a história da população negra do Brasil, e a história da população negra no Brasil não é só a história da população negra, é a história do país em si.

Nesse momento eu também decidi que não ia falar mais nada na Marinha. Não ia mais me expor porque o lugar para o qual eu estava indo ninguém me conhecia.

Uma das coisas que eu já fazia, quando a coisa começou a esquentar antes da eleição de Bolsonaro, foi preparar minhas redes sociais para receber as pessoas da Marinha.

O Facebook era muito usado na época e tinha uma configuração para que não aparecesse para eles os posts em que eu me posicionava. O meu Twitter era fechado.

Também fui morar em Joinville, que era uma cidade vizinha. Fui criando essa vida em que eu dava o mínimo da minha vida pessoal para eles. Eles iam conhecer o sargento André, não o Thiago André.

O boom do podcast

O podcast foi crescendo e dando audiência absurda. Foi o momento do boom dos podcasts, e a gente foi parar na B9 [empresa de conteúdo com podcasts famosos]. E eu já não queria mais que ele ficasse pequeno, queria que ele crescesse.

Um colega que fazia o podcast Ubuntu Esporte Clube, do Globo Esporte, me convidou para participar do Redação SporTV. Eu já tinha feito uma série sobre o negro no futebol e não ia perder essa oportunidade. Dois dias depois, pintou no grupo da minha turma o vídeo. E aí eu falei: "Se isso sair daqui, vai dar merda".

Foi aí que eu pensei que eu deveria transformar isso num projeto rentável, porque eu já estava prevendo que ia chegar o momento do conflito, o momento em que eu ia ter que decidir.

Se eu fosse descoberto, provavelmente tomaria uma cadeia interna como punição por me posicionar politicamente. A gente pode tomar até dez dias de prisão rigorosa e, depois disso, obviamente vai ter que encerrar o projeto. Seria mais uma frustração na Marinha, pela terceira vez, acabando com a parada que tinha sido boa para mim.

O fim na Marinha

Muitos criadores já falaram sobre como para pessoas negras, que vêm de uma família muito pobre, muitas vezes a sua ascensão não é só sua, é da sua família. Isso pesou muito [para sair da Marinha] porque tem muita gente que precisa de mim.

Também nunca tinha visto alguém sair da Marinha depois de uns dez anos porque você sai com uma mão na frente e outra para trás.

Metade da minha vida de 32 anos foi na Marinha, e, antes, boa parte dela eu passei sonhando em entrar para a Marinha. Chegou no meio disso e o meu sonho era sair de lá. Durante sete anos eu nutri esse sonho.

Os últimos dois, três anos foram os piores que vivi lá dentro. Mas muita gente me retornava sobre o podcast dizendo que tinham levado ele para dentro de uma escola, mandando foto. E eu pensava: "Porra, eu não posso estar lá na sala de aula, mas de alguma forma eu estou". Foi o que me sustentou por um bom tempo, porque pensei em parar algumas vezes. O que me manteve fazendo foi justamente saber que tinha muita gente do outro lado que estava sendo tão salva quanto eu.

Agora eu consigo fazer o História Preta com mais tranquilidade. Consigo pegar e criar, por exemplo, uma temporada sobre Fundação Palmares e falar sobre o mal do Bolsonaro sabendo que ele não é meu patrão.

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