É novembro de 1950. Uma mulher de 43 anos, casada, com dois filhos crescidos, sai para comprar cigarros para o marido. Aos domingos, a venda de alguns itens é proibida.
"Na tabacaria havia muita gente. Enquanto esperava minha vez, já com o dinheiro trocado, vi uma pilha de cadernos na vitrine. Eram cadernos pretos, luzidios, grossos, daqueles que eu levava para a escola e nos quais —antes mesmo de iniciá-los eu logo escrevia, na primeira página, com entusiasmo, o meu nome: Valeria."
Então, ela pede ao atendente que, além do cigarro, dê a ela também um caderno, ao que ele responde, com expressão severa "não pode, é proibido". Subitamente desesperada, disposta a suplicar, ela o convence, e acaba levando o caderno para casa embaixo do casaco.
É a partir dessa premissa simples que a escritora Alba de Céspedes escreveu esse romance tão simples e tão instigante. "Caderno Proibido", de 1952, chega agora ao Brasil com tradução de Joana Angélica d’Avila Melo e interessante posfácio de Mariella Muscariello, pela editora Companhia das Letras.
Provavelmente devemos agradecer à autora Elena Ferrante, que citou Alba de Céspedes —especificamente o romance "Dalla Parte di Lei"— em "Frantumaglia: Os Caminhos de uma Escritora", obra muito rica, em que se reúnem cartas, entrevistas, ensaios e outros textos de Ferrante ao longo dos anos, e acabou sendo um guia para que leitores e editores percorressem suas referências literárias.
Alba de Céspedes tem uma história pessoal que mais parece literatura. Filha de um embaixador cubano com uma mulher italiana, nasceu em Roma, em 1911, e estreou na literatura com uma série de contos, passando então para os romances.
Ela se envolveu com a pauta antifascista, fundou a revista Mercurio, em 1944, e escreveu também para o teatro, o rádio, o cinema e a televisão. No Brasil, já havia sido publicada com "Ninguém Volta Atrás", em 1962, pela Civilização Brasileira. Agora, redescoberta, chega para ocupar o lugar de destaque que de fato merece.
Lendo "Caderno Proibido", é fácil identificar o que chamou a atenção de Ferrante, e mesmo estabelecer paralelos formais e temáticos entre ambas. A protagonista começa a experimentar uma sutil transformação depois de voltar para casa com o caderno proibido.
A transgressão e o posterior segredo fazem com que, a princípio, só consiga escrever no caderno sobre ele mesmo e sobre seu empenho em manter o objeto escondido. "O mais bizarro é que, quando posso enfim tirar o caderno de seu esconderijo, sentar e começar a tomar nota, não encontro nada a dizer além de relatar minha luta cotidiana para ocultá-lo."
O romance epistolar que lemos é o próprio caderno, em que, aos poucos, Valeria começa a se aprofundar nas reflexões que faz sobre si mesma e sobre a vida que leva. É como se a própria escrita, em segredo, a conduzisse por um caminho de autodescoberta que, uma vez iniciado, não pode mais ser interrompido.
Ter 40 e poucos anos, na década de 1950, era sinônimo de estar em um momento conservador da vida, preparando os filhos para o casamento, esperando para ser avó, quando já não o era.
Mas o despertar da personagem faz lembrar que ali há muito mais do que uma função e um papel social, que ela tem cumprido com diligência, mas que a mera ideia de ter um segredo e um espaço próprio —o teto todo seu de Valeria era o caderno proibido— desencadeia uma rede de associações que vai cavando mais e mais fundo, confrontando a protagonista com uma complexidade recalcada. É bonito de acompanhar esse processo, tanto do ponto de vista psíquico quanto literário.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.